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BERNARDO CARVALHO
Michael Moore da vida privada
Diz bastante sobre o tempo
em que vivemos que, entre os
filmes em cartaz em Paris que falam de uma volta às origens
("Terra da Fartura", de Wim
Wenders, "Má Educação", de Almodóvar), tenha sido justamente
um documentário sem maior importância exibido na televisão numa madrugada de sábado que
atraiu a minha atenção.
Sophie Bredier é uma jovem cineasta francesa, de origem coreana, que foi adotada aos quatro
anos. Seu primeiro filme, "Separees" (Separadas), tratava de sua
volta à Coréia em busca dos pais
biológicos desconhecidos. "Corps
Etrangers" (Corpos Estrangeiros),
exibido agora pelo canal franco-alemão Arte, acompanha a documentarista, grávida do primeiro
filho, fazendo as perguntas em
princípio mais impertinentes, tolas e inadequadas a todos os que
encontra pela frente, e obtendo
eloqüentes silêncios e perplexidades como respostas que rompem
com a facilidade do conforto compartilhado. Na sua aparente simplicidade intelectual, a cineasta
acaba expondo as feridas das diferenças físicas e culturais, e do racismo, para além do esperado e do
correto.
A volta às origens é um assunto
surrado. Almodóvar já fez melhor
com o mesmo tema. E faz tempo
que o maneirismo discreto dos
primeiros filmes de Wenders cedeu a um sentimentalismo piegas
e moralista. A nostalgia do lar, a
xenofobia e o isolacionismo americano em "Terra da Fartura" dão
a impressão de não passar de elementos esquemáticos para comover e conscientizar o espectador.
"Corps Etrangers", ao contrário,
procura a genealogia como quem
inflama o que parecia cicatrizado.
O filme pode ser convencional na
forma; são as perguntas da documentarista em cena, se arriscando
diante da câmera como uma espécie de Michael Moore da vida privada -mas sem nenhum cinismo- que o tornam tão surpreendente.
Aqui a busca das origens é despertada pela imponderabilidade
do futuro. Como uma criança à
procura de respostas para tudo,
Sophie Bredier quer por força saber quem será o seu filho. Numa
civilização cada vez mais organizada pela genética, nada mais natural que a futura mãe se mostre
especialmente obcecada pelo destino biológico da criança.
A documentarista consulta os
médicos. Quer saber se o filho terá
cara de asiático. "E se um dos
meus pais biológicos não for asiático?" Faz as perguntas mais idiotas, as que em geral não têm resposta. Fragiliza-se diante da câmera, e os médicos, a seu tempo, se
vêem constrangidos pelas duas
(pela cineasta e pela câmera). Logo estarão falando de "doenças
que atingem mais os asiáticos"
etc. Era o que a cineasta esperava
ouvir. Ela que se faz de tonta.
Quer que falem das diferenças
biológicas entre os seres humanos
e de suas conseqüências. Quer que
revelem o que há de impublicável
no seu discurso privado, no discurso da ciência. Quer que o mundo fale às claras sobre as diferenças físicas entre os homens, sobre
aquelas que a fazem se sentir estrangeira em seu próprio corpo.
Vai atrás de documentos que
provem a sua origem, mas não os
encontra. Faz-se de desentendida
para ouvir de uma recepcionista
que, embora seja francesa, terá
que fazer seu pedido junto ao Ministério das Relações Exteriores.
Procura uma amiga, também de
origem coreana e adotada por
franceses, e a leva a dizer que se
sente estrangeira, mais coreana
do que francesa, embora sempre
tenha vivido na França. Busca a
contradição.
Vai à casa da mãe adotiva. Quer
saber por que a escolheram, uma
coreana e não uma francesa. A
mãe diz que nunca levou isso em
conta. Pergunta à filha se ela não
se lembra de que, desde pequena,
era ela e não a mãe quem vivia
obcecada pela idéia da disparidade física, pelo fato de seus olhos
amendoados serem diferentes dos
olhos dos pais. A documentarista
diz que não se lembra. Pergunta
por que a mãe, que sempre viajou
tanto, nunca quis ir à Coréia. A
mãe tenta escapar e, por fim,
diante da insistência da filha, dá o
braço a torcer : "Por uma razão
que eu nunca lhe direi".
As perguntas sem resposta são as
mais dramáticas, as que falam pelo filme. A emoção provocada pela
busca sem fim de Sophie Bredier
atrás de si mesma não pode ser esquemática ou piegas. Porque não
é exterior. É resultado de uma
loucura latente, contida, que
transborda na sua luta por entender o que significa afinal ser uma
pessoa, um indivíduo, diferente
dos que o cercam.
A cineasta pergunta se a mãe
adotiva ficou magoada quando
ela decidiu voltar à Coréia em
busca dos pais biológicos. A mãe
diz que não, achou que seria uma
forma de a filha reencontrar o
equilíbrio emocional. A loucura,
entretanto, volta com a gravidez.
A idéia de uma descendência, que
a documentarista achava impossível, reforça o problema da ascendência. Para ter um filho, Sophie Bredier precisa saber quem
eram seus pais.
A mãe adotiva lhe pergunta por
que ela esperou quatro meses para lhe revelar que estava grávida.
E a documentarista, com lágrimas nos olhos, fala da traição: na
sua loucura, ficar grávida significava trair a mãe infértil que a
criou.
Poucos filmes hoje conseguem
ser tão intensos e inesperados ao
falar do problema da identidade.
"Corps Etrangers" faz as perguntas certas, as mesmas que uma
criança faria. As perguntas de alguém que tem a coragem de dizer
que acha estranho viver no seu
próprio corpo e com isso desafia a
pretensa normalidade do mundo.
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