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CONTARDO CALLIGARIS
Quantos você matou?
O assassino é idealizado como se nos vingasse das imposições sociais aceitas a contragosto
DURANTE O segundo conflito
mundial, Ernest Hemingway foi correspondente de
guerra (não era combatente, mas
gostava de circular armado). Ora, recentemente, um jornalista descobriu duas cartas em que o escritor se
gaba de ter matado 122 alemães e
conta o seguinte: um prisioneiro desarmado gozou da sua cara (tipo,
"você não vai ter a coragem de me
matar, seu bosta"), e Hemingway
mandou ver.
É provável que se trate de uma
fanfarronice. Naquelas circunstâncias, talvez fosse possível matar um,
mas não 122. Resta que o escritor
achou "legal" vangloriar-se de ter
matado.
Hemingway passou a vida inteira
tentando demonstrar ao mundo e a
si mesmo que ele era "homem" de
verdade.
Sua história pessoal faria a festa de
qualquer psicanalista, desde o suicídio do pai até o dele mesmo, mas o
teor das cartas me fez pensar num livro, que, em 2002, foi transformado
num filme homônimo, "Confissões
de uma Mente Perigosa". É a autobiografia de Chuck Barris, um produtor e apresentador da televisão
americana, que contou ter sido, durante anos, um assassino ao soldo da
CIA (a qual não confirmou nem desmentiu o fato).
O livro de Barris começa com ele
contemplando, no espelho, as injúrias do tempo: sua barriga, sua carne
flácida. O fato (ou a fábula) de ter sido um sicário parece valer, para Barris, como uma cirurgia plástica:
"Olhe só, tenho cara de esportista de
sofá e cerveja, mas as aparências enganam: sou um assassino".
Talvez Hemingway e Barris sejam
exemplos patológicos e patéticos de
machismo. Mas escute o último disco de Bob Dylan, "Modern Times".
Na segunda faixa ("Spirit on the Water"), Dylan canta que ele não poderá permanecer com sua amada no
paraíso porque "I killed a man back
there..." (matei um cara no passado).
Que charmoso, não é? Nenhum espanto: de Johnny Cash a Merle Haggard, o passado sombrio do cantor é
um lugar comum da música
"country".
Em geral, o número de assassinatos em nossas ficções (escritas ou filmadas) é infinitamente superior ao
das chances efetivas de nós, um dia,
matarmos alguém. Em suma, ao que
parece, matar nos faz "sonhar".
Evidentemente, há traços de caráter e elementos da história de uma
vida que produzem uma disposição
assassina, chamada, por alguns psicanalistas ingleses, de "blueprint for
murder" (instruções para matar).
Mas, certamente, essas peculiaridades dos (poucos) que matam prosperam num ambiente em que, para
os machinhos, ter matado ou ter disposição para matar são marcas "positivas".
Ninguém parece achar bizarro
que, durante algum tempo, nossos
meninos queiram se vestir e andar
pelas ruas como membros de gangues sanguinárias (desse ponto de
vista, os jovens que se alistam no
narcotráfico são apenas crianças
que podem realizar um jogo que todos curtem).
Alguns se preocupariam se seus filhos não passassem por uma "fase"
de brincadeiras assassinas; receariam, por exemplo, que eles fossem
debochados como "frouxos" pelo
grupo dos amiguinhos. Não estariam completamente errados: tudo
indica que, em nossa cultura, matar
é um ato que impõe respeito, ou
pior, uma espécie de admiração. Como no Oeste, as entalhaduras na
empunhadura do revólver (que contam o número de mortos) medem o
valor do pistoleiro.
Censurar nossas produções culturais não é uma solução. Vivemos numa contradição constante entre a liberdade do indivíduo (como valor
supremo) e a coação das leis necessárias para vivermos juntos. Conseguimos respeitar as leis; em contrapartida, o fora-da-lei é o herói de
nosso individualismo.
"Não Matarás" talvez seja a norma
que internalizamos melhor, mas essa é mais uma razão para que "admiremos" o matador: ele consegue agir
contra o interdito que está mais solidamente dentro de nós.
Nas telas, nas brincadeiras de
crianças, nos escritos de Hemingway e Barris ou, simplesmente, nas
nossas fantasias, o assassino é idealizado como se ele nos vingasse de todas as imposições sociais que aceitamos a contragosto.
Às vezes, a tela e a realidade se
confundem. Em Campinas, na semana passada, um segurança de
shopping center matou, por nada,
um jovem que tinha derrubado três
cones com a sua moto. Armas de
verdade deveriam estar só nas mãos
dos adultos. O problema é: como encontrá-los?
ccalligari@uol.com.br
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