São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

Mostrar e esconder

"Ken Park", filme de Larry Clark e Ed Lachman exibido na Mostra de São Paulo e com estréia prevista para janeiro, começa com um adolescente que estoura os miolos com um revólver numa pista de skate. A violência explícita da cena remete, por oposição, aos filmes de Robert Bresson (1901-99).
Em Bresson, os adolescentes também se suicidam, mas o espectador só fica sabendo disso por indícios. Em "Mochette" ("Mochette, a Virgem Possuída", 1967), a protagonista rola morro abaixo e termina, depois de três tentativas frustradas, caindo no rio. Seu suicídio é deduzido pelo som de um corpo que cai na água, fora de campo. Em "Une Femme Douce" (Uma Mulher Suave, 1969), o suicídio da moça é intuído pela echarpe que desce, ao sabor do vento, pela fachada do prédio de onde ela se atirou.
Larry Clark tem um fascínio voyeurístico pelos adolescentes, que já era ostensivo em "Kids" (1995) e deve deixar de cabelo em pé a América puritana, hoje tão obcecada pela pedofilia. Bresson também tinha uma atração manifesta pela beleza dos jovens, tanto que logo deixou de lado os atores e, assim como Clark, passou a trabalhar com desconhecidos que encontrava na rua, ou que via em capas de revista. Ao contrário de Clark, porém, o diretor francês os mostrava ao mesmo tempo que os escondia.
Os jovens de Bresson eram mais adultos que os de Clark. Em geral, não seguiram a carreira de ator. O cineasta, que preferia chamá-los de "modelos", achava isso natural. Sua teoria, que está exposta no excepcional "Notas sobre o Cinematógrafo", é de um realismo peculiar: define o "modelo", por oposição ao ator, como "um corpo e uma alma inimitáveis". Seria, portanto, um absurdo que fizessem um segundo filme: "É impossível, pois seria como se a mesma pessoa representasse uma outra".
Por muito tempo pensei em fazer uma reportagem com os "modelos" de Bresson, descobrir o que se tornaram na meia-idade. Em 1989, como estava indo a Paris, consegui o telefone do cineasta e aproveitei para tentar marcar um encontro com ele, a despeito do que me diziam: que era uma coisa louca, não adiantava, ele não dava entrevistas. Liguei antes de sair de São Paulo. Para minha surpresa, ele mesmo atendeu e, muito simpático, concordou em me receber. Pediu que eu lhe telefonasse de novo ao chegar a Paris.
Bresson não filmava fazia anos, desde "L'Argent" ("O Dinheiro", 1983). Seu projeto de adaptar o livro do Gênesis vinha sendo postergado desde 1963 -agora, Martin Scorsese estava disposto a ajudá-lo a viabilizar a produção. Liguei assim que pus os pés na cidade. Uma mulher atendeu. Era uma voz jovem. Queria saber quem eu era e o que queria: "Deve haver algum engano. Meu marido não dá entrevistas". Eu insisti, disse que tinha vindo só para isso, e ela me passou o cineasta.
Bresson morava num prédio no Quai de Bourbon, na ponta da Ile de St. Louis, onde Cortázar ambientou a ação do conto "Las Babas del Diablo", que deu origem a "Blow Up", de Antonioni. Quando toquei o interfone, pediu que eu subisse ao terceiro andar. A porta estava entreaberta e ele me esperava no interior de uma sala clara, cujas janelas davam para o Sena.
Sentamos um diante do outro. Perguntei se podíamos começar e ele disse que sim. Liguei o gravador sobre uma mesa de centro entre nós dois. Fiz a primeira pergunta, sobre o projeto de filmar o Gênesis. Resposta: "É um projeto completamente louco. E as coisas loucas sempre acabam se realizando".
Bresson respondeu a mais três ou quatro perguntas, sempre de maneira esquiva. Sobre os filmes recentes, por exemplo: "Faz tempo que não vou ao cinema. Não posso dizer de outra forma". Ou sobre a pintura, que ele praticava antes de se tornar cineasta: "Ainda sou pintor. Pinto com os olhos. Prefiro não falar de pintura. Daria um livro".
De repente, parou de falar e olhou para o gravador. "O que é isso? Eu não dou entrevista com gravador." Me comprometi a desligá-lo e continuar anotando à mão. Ele concordou a contragosto. Respondeu a mais umas tantas perguntas e aí interrompeu uma frase no meio. Olhava fixamente para a porta de entrada entreaberta. Ao me virar, tive a impressão de entrever a mão de uma mulher na maçaneta. Só a mão, por um instante, um típico plano bressoniano. Ele se levantou e foi até lá. Ouvi sussurros atrás da porta. Voltou depois de uns minutos, respondeu a mais duas perguntas e foi novamente interrompido, agora pela voz jovial da mulher que, sem se mostrar, o chamava pela fresta da porta entreaberta: "Bebért".
Quando voltou, já não respondia às minhas perguntas. Disse que não podíamos prosseguir. Tinha sido um mal-entendido. Saí frustrado, ainda sem entender que toda aquela "mise-en-scène" de dar e tomar era no fundo natural, tinha a ver com os próprios filmes. Atravessei a rua e liguei o gravador com o que me restava da malfadada entrevista. Minutos depois, uma mulher elegante, pelo menos 30 anos mais jovem do que o cineasta, saiu do prédio. Entrou num carro, deu a partida e foi embora, enquanto eu ouvia de novo, entre as poucas respostas que tinha gravado: "As coisas loucas sempre acabam se realizando". Nem sempre.


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