São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

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RODAPÉ

Os loureiros cortados ou a vida rascunhada na intimidade

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Os suíços orgulham-se do relógio cuco, monsieur Gillette sobrevive na lâmina de barbear, mas é Édouard Dujardin (1861-1949) que seguirá permanentemente associado ao "monólogo interior", inovação técnica que representa para a narrativa em prosa o passaporte definitivo rumo às experiências modernistas.
Em cuidadosa edição, a porto-alegrense Brejo lança "Os Loureiros Estão Cortados", narrativa que destacou Dujardin no grupo simbolista francês, no qual atuava como poeta, dramaturgo e diretor da "Revue Wagnerienne" e da "Revue Indépendante", que publicou o texto, originalmente em quatro partes, no ano de 1887.
O que teria levado Joyce a se interessar pelo breve relato de seis horas banais na vida de Daniel Prince, um jovem estudante de direito, num fim de tarde de abril, em Paris, consumidas em preparativos para um encontro noturno com a atriz que cobiça e cujos caprichos sustenta? Tematicamente, trata-se de um universo conhecido, marcado pelo mundanismo, sensualista e estetizante ("o vinho, o amor e o tabaco"), que ecoa o Huysmans de "Às Avessas" e volta, infinitamente mais complexo, no Proust de "Em Busca do Tempo Perdido".
A novidade que entusiasmou o autor de "Ulysses" (e, com ele, Virginia Woolf, Faulkner e tantos outros), a ponto de incorporá-la aos monólogos de Stephen Dedalus e Molly Bloom, estava no ritmo associativo que estrutura o breve romance. Mergulhado no íntimo do protagonista, afrouxando as amarras lógicas da sintaxe e da pontuação, Dujardin forjou um simulacro do pensamento em ebulição, notação própria capaz de imitar o fluxo da consciência em sua constante mobilidade.
Em "Os Loureiros Estão Cortados", soma-se a um enredo rarefeito, às lacunas e saltos elevados à categoria de procedimentos sistemáticos, uma precedência inédita das imagens recorrentes sobre a lógica discursiva. Todos estes traços contribuem para o caráter musical do texto, mais apoiado nos paralelismos do que no encadeamento preciso de causas e conseqüências. O tempo se espacializa e o leitor se vê imerso no círculo estreito da intimidade de Daniel, experimentando a atualidade de suas pequenas angústias e hesitações, verbais inclusive.
Enquanto faz hora para rever Lea, a atriz, o moço percorre a cidade. Suas modestas intervenções neste espaço -encontra um amigo às vésperas de se casar; janta num café modesto; entreouve um fragmento de canção na rua; faz uma rápida visita à sua casa para se trocar- são fragmentadas e assimiladas ao oceano interior de incertezas (será que passará a noite com a moça? Gasta demais com ela?). O resultado é de dupla mão: por força da linguagem, fantasias, aspirações e fantasmas pessoais ficam cravados na concretude vizinha do mundo exterior, cuja variedade de estímulos sobrevive, recortada, na singularidade de uma história individual.
Estilisticamente, Dujardin se instala confortavelmente nos interstícios propiciados por essa multiplicação voluntária de lacunas (discursivas, lógicas, gramaticais). Abusa das frases nominais encadeadas, abranda ou suprime marcas de transição, servindo-se muito do ponto e vírgula com valor de respiração indistinta. Sua prosa tende ao lírico, bem de acordo, aliás, com o gosto da época (não por acaso, como poeta, o autor preferia o gênero do poema em prosa), mas de um lirismo pouco idealista, que acolhe as impurezas do tempo presente.
Mesmo as passagens em que o personagem deveria, em tese, ser forçado a abandonar provisoriamente a convidativa e absorvente confusão interior, como as dialogadas, acabam engolfadas ou redefinidas pela onipresença da consciência como foco refletor do mundo. Exemplo claro é o episódio em que Lea, à noite, pede a Daniel que conte seu dia. Aos silêncios que intercalam as frases minguadas, corresponde uma avalanche de pensamentos censurados, ressentimento calados, expectativas em suspenso. O enorme abismo que se cava entre o resumo tosco oferecido e o rebuliço da vida que a totalidade da narrativa deixa entrever, explica a longa vida do monólogo interior e o interesse que ele ainda desperta.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Os Loureiros Estão Cortados
    
Autor: Édouard Dujardin
Tradução: Hilda Pedrollo
Editora: Brejo
Quanto: R$ 24 (124 págs).


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