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RODAPÉ
Os loureiros cortados ou a vida rascunhada na intimidade
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Os suíços orgulham-se do relógio cuco, monsieur Gillette
sobrevive na lâmina de barbear,
mas é Édouard Dujardin (1861-1949) que seguirá permanentemente associado ao "monólogo
interior", inovação técnica que representa para a narrativa em prosa o passaporte definitivo rumo às
experiências modernistas.
Em cuidadosa edição, a porto-alegrense Brejo lança "Os Loureiros Estão Cortados", narrativa
que destacou Dujardin no grupo
simbolista francês, no qual atuava
como poeta, dramaturgo e diretor
da "Revue Wagnerienne" e da
"Revue Indépendante", que publicou o texto, originalmente em
quatro partes, no ano de 1887.
O que teria levado Joyce a se interessar pelo breve relato de seis
horas banais na vida de Daniel
Prince, um jovem estudante de
direito, num fim de tarde de abril,
em Paris, consumidas em preparativos para um encontro noturno com a atriz que cobiça e cujos
caprichos sustenta? Tematicamente, trata-se de um universo
conhecido, marcado pelo mundanismo, sensualista e estetizante
("o vinho, o amor e o tabaco"),
que ecoa o Huysmans de "Às
Avessas" e volta, infinitamente
mais complexo, no Proust de "Em
Busca do Tempo Perdido".
A novidade que entusiasmou o
autor de "Ulysses" (e, com ele,
Virginia Woolf, Faulkner e tantos
outros), a ponto de incorporá-la
aos monólogos de Stephen Dedalus e Molly Bloom, estava no ritmo associativo que estrutura o
breve romance. Mergulhado no
íntimo do protagonista, afrouxando as amarras lógicas da sintaxe e da pontuação, Dujardin forjou um simulacro do pensamento
em ebulição, notação própria capaz de imitar o fluxo da consciência em sua constante mobilidade.
Em "Os Loureiros Estão Cortados", soma-se a um enredo rarefeito, às lacunas e saltos elevados à
categoria de procedimentos sistemáticos, uma precedência inédita
das imagens recorrentes sobre a
lógica discursiva. Todos estes traços contribuem para o caráter
musical do texto, mais apoiado
nos paralelismos do que no encadeamento preciso de causas e
conseqüências. O tempo se espacializa e o leitor se vê imerso no
círculo estreito da intimidade de
Daniel, experimentando a atualidade de suas pequenas angústias
e hesitações, verbais inclusive.
Enquanto faz hora para rever
Lea, a atriz, o moço percorre a cidade. Suas modestas intervenções
neste espaço -encontra um amigo às vésperas de se casar; janta
num café modesto; entreouve um
fragmento de canção na rua; faz
uma rápida visita à sua casa para
se trocar- são fragmentadas e
assimiladas ao oceano interior de
incertezas (será que passará a noite com a moça? Gasta demais com
ela?). O resultado é de dupla mão:
por força da linguagem, fantasias,
aspirações e fantasmas pessoais
ficam cravados na concretude vizinha do mundo exterior, cuja variedade de estímulos sobrevive,
recortada, na singularidade de
uma história individual.
Estilisticamente, Dujardin se
instala confortavelmente nos interstícios propiciados por essa
multiplicação voluntária de lacunas (discursivas, lógicas, gramaticais). Abusa das frases nominais
encadeadas, abranda ou suprime
marcas de transição, servindo-se
muito do ponto e vírgula com valor de respiração indistinta. Sua
prosa tende ao lírico, bem de
acordo, aliás, com o gosto da época (não por acaso, como poeta, o
autor preferia o gênero do poema
em prosa), mas de um lirismo
pouco idealista, que acolhe as impurezas do tempo presente.
Mesmo as passagens em que o
personagem deveria, em tese, ser
forçado a abandonar provisoriamente a convidativa e absorvente
confusão interior, como as dialogadas, acabam engolfadas ou redefinidas pela onipresença da
consciência como foco refletor do
mundo. Exemplo claro é o episódio em que Lea, à noite, pede a
Daniel que conte seu dia. Aos silêncios que intercalam as frases
minguadas, corresponde uma
avalanche de pensamentos censurados, ressentimento calados, expectativas em suspenso. O enorme abismo que se cava entre o resumo tosco oferecido e o rebuliço
da vida que a totalidade da narrativa deixa entrever, explica a longa
vida do monólogo interior e o interesse que ele ainda desperta.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Os Loureiros Estão Cortados
Autor: Édouard Dujardin
Tradução: Hilda Pedrollo
Editora: Brejo
Quanto: R$ 24 (124 págs).
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