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CRÍTICA
Subsolo dá a paz que superfície nega
CRÍTICO DA FOLHA
É provável que muitos leitores se ressintam do final, no
mínimo pouco resolutivo, como
aliás admite o próprio autor. Alguns podem não gostar dos toques de melodrama (ex-marido
violento, mulher insubmissa) ou
até reclamar de certa filosofia barata ("É que a verdade muda
quando muda o observador...").
Talvez tenham razão. Em primeiro lugar porque, como em todo bom livro, o que interessa não
está bem na história, mas no que
há abaixo dela. Como diz Berenice: "Achei que ninguém estava interessado na morte do travesti e
na descoberta do assassino. Que
[...] a verdade não tinha a menor
importância".
O fato é que a verdade tem importância sim, mas o problema é
que, quanto mais ela é procurada,
mais ela parece se ocultar. O segundo ponto positivo está num
achado de Garcia-Roza. Ele transfere parte da ação das ruas de Copacabana para seus subterrâneos,
ou seja, de fato, para o que está
embaixo.
Berenice é um Orfeu cuja lira é
seu táxi e que busca, etimologicamente, no inferno (o ínfero, o local subterrâneo) o que, na superfície, não tem como encontrar. Seu
guia é quase um homem das cavernas, cujos cabelos de fogo parecem combinar com a função de
sentinela das regiões inferiores.
Paradoxalmente, os infernos de
Garcia-Roza oferecem a paz que a
superfície nega: são calmos, instigantes, reveladores. As ruas do
Rio, ao contrário, descrevem-se
muitas vezes como uma selva,
com seus predadores noturnos.
O autor disse que cogitou chamar Russo de Ruço. Em gíria, pode significar complicação ("A coisa tá ficando ruça", canta Rita
Lee), mas também, em sua origem, quer dizer "orvalhado", ou
seja, também proporciona refrigério. Não é à toa que a cena de
idílio entre Russo e Berenice ocorra junto a uma fenda, de onde mana um filete de água.
Reside nesse paradoxo o terceiro dos achados do romance. Tudo
aqui parece ter o sinal trocado ou
carregar indícios ambivalentes. O
inferno serena, enquanto o solo
embrutece. Berenice é uma mulher que exerce uma profissão de
homens. Russo é um sem-teto
que não combina com a imagem
que se faz de um desabrigado.
A própria vítima carrega em si a
ambigüidade sexual. E seu corpo
é descoberto por um menino de
dois anos, que está mais próximo
do que os adultos do vasto mar da
inconsciência que impulsiona
nossos sonhos e pesadelos.
"Sursum corda", costuma dizer
o sacerdote no início da missa, sugerindo que procuremos os sentimentos elevados. Garcia-Roza
propõe o contrário. Sob o arcabouço do romance policial, convida o leitor a seguir cada vez mais
fundo, em busca do inefável que
nos fascina e nos apavora.
(MP)
Berenice Procura
Autor: Luiz Alfredo Garcia-Roza
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (184 págs.)
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