São Paulo, sábado, 26 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Subsolo dá a paz que superfície nega

CRÍTICO DA FOLHA

É provável que muitos leitores se ressintam do final, no mínimo pouco resolutivo, como aliás admite o próprio autor. Alguns podem não gostar dos toques de melodrama (ex-marido violento, mulher insubmissa) ou até reclamar de certa filosofia barata ("É que a verdade muda quando muda o observador...").
Talvez tenham razão. Em primeiro lugar porque, como em todo bom livro, o que interessa não está bem na história, mas no que há abaixo dela. Como diz Berenice: "Achei que ninguém estava interessado na morte do travesti e na descoberta do assassino. Que [...] a verdade não tinha a menor importância".
O fato é que a verdade tem importância sim, mas o problema é que, quanto mais ela é procurada, mais ela parece se ocultar. O segundo ponto positivo está num achado de Garcia-Roza. Ele transfere parte da ação das ruas de Copacabana para seus subterrâneos, ou seja, de fato, para o que está embaixo.
Berenice é um Orfeu cuja lira é seu táxi e que busca, etimologicamente, no inferno (o ínfero, o local subterrâneo) o que, na superfície, não tem como encontrar. Seu guia é quase um homem das cavernas, cujos cabelos de fogo parecem combinar com a função de sentinela das regiões inferiores.
Paradoxalmente, os infernos de Garcia-Roza oferecem a paz que a superfície nega: são calmos, instigantes, reveladores. As ruas do Rio, ao contrário, descrevem-se muitas vezes como uma selva, com seus predadores noturnos.
O autor disse que cogitou chamar Russo de Ruço. Em gíria, pode significar complicação ("A coisa tá ficando ruça", canta Rita Lee), mas também, em sua origem, quer dizer "orvalhado", ou seja, também proporciona refrigério. Não é à toa que a cena de idílio entre Russo e Berenice ocorra junto a uma fenda, de onde mana um filete de água.
Reside nesse paradoxo o terceiro dos achados do romance. Tudo aqui parece ter o sinal trocado ou carregar indícios ambivalentes. O inferno serena, enquanto o solo embrutece. Berenice é uma mulher que exerce uma profissão de homens. Russo é um sem-teto que não combina com a imagem que se faz de um desabrigado.
A própria vítima carrega em si a ambigüidade sexual. E seu corpo é descoberto por um menino de dois anos, que está mais próximo do que os adultos do vasto mar da inconsciência que impulsiona nossos sonhos e pesadelos.
"Sursum corda", costuma dizer o sacerdote no início da missa, sugerindo que procuremos os sentimentos elevados. Garcia-Roza propõe o contrário. Sob o arcabouço do romance policial, convida o leitor a seguir cada vez mais fundo, em busca do inefável que nos fascina e nos apavora. (MP)

Berenice Procura
   
Autor: Luiz Alfredo Garcia-Roza
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (184 págs.)


Texto Anterior: Livros - Romance: Garcia-Roza encontra o submundo em antipolicial
Próximo Texto: Vitrine brasileira
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.