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FERREIRA GULLAR
Vida de poeta
Se for me preocupar, não vivo nem escrevo mais. Quando chegar a hora, acho uma solução
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ERA DOMINGO , quando o telefone tocou.
- Otávio, é você? Aqui é o
Xisto.
- Tudo bem contigo?
- Vamos dizer que sim. Sabe aquela editora que ficou de me dar resposta? Não deu.
- Editora para livro de poesia é difícil. Poucas publicam poesia.
- Mas essa publica. O problema é
que o cara que decide é daqui de meu
Estado e nunca foi com minha cara.
Aliás, não vai com a de ninguém.
- Acha então que ele...
- É, não sei se vai dizer não, mas
vai me deixar em banho-maria.
- Conheço gente de lá.
- Bem, se puderes falar...
- Vou ver, mas acho que você devia buscar uma editora menor, mais
voltada para a poesia.
- Pode ser, mas vou aguardar a
resposta dele. Espero que não demorem muito, que o dinheiro aqui está
curto.
- Em que está trabalhando agora?
- Em nada. Estou vivendo daquele prêmio que ganhei em 2004.
- Precisa arranjar um emprego.
- Já tentei. Antes do prêmio, estava vivendo daquela indenização que
recebi por ter sido preso político.
Aqui no meu Estado, fizeram uma lei
para indenizar o pessoal que, durante a ditadura, pegou cana. Mas minha
indenização foi pequena. Achei que,
se pedisse mais, não conseguiria nada e pedi pouco. Mas agora entrei
com um recurso, reivindicando a diferença.
- E acha que vai conseguir?
- Acho que vou, sabe por quê? Um
cara que viveu comigo na clandestinidade testemunhou a meu favor, e
isso permite receber a indenização
máxima.
- E quando vão te pagar?
- Ainda depende da assinatura do
governador e, agora, época de eleição, ele não quer saber disso.
- Conheces o governador?
- Não, mas sou amigo de um dos
secretários do governo, que falou
com ele.
- E o governador tem chance de se
reeleger?
- Chance tem, e procuro convencer meus conhecidos a votarem nele.
Mas pode ser que o secretário, que é
meu grande amigo, não continue no
novo governo.
- Ah, é? E aí como vai ser?
- Tenho que me apressar. Assim
que passar a eleição, mesmo que ele
não se reeleja, vou pedir que assine a
indenização. Tem que ser neste ano
ainda.
- Mas o que você deveria conseguir era uma pensão por ter sido perseguido político. Pensão é para o resto da vida. Muitos conseguiram.
- Já pensei nisso, mas aqui no Estado não tem esse tipo de ressarcimento. É só a indenização.
- Tenta então no federal.
- Já me informei, cara. Tem aqui
um advogado que cuida disso. Só que
ele cobra 400 paus adiantado. Estou
esperando receber a complementação da indenização para acertar a
coisa com ele. Me garantiu que não
tem erro.
- Mas tem que se informar para
saber se ele já conseguiu pra alguém.
- Conseguiu para muita gente. Ele
tem ligação com o PT. O pessoal do
PT, que procurou a ajuda dele, conseguiu. E muitos outros também.
- Não é difícil. Conheço várias
pessoas que nem foram perseguidas
e conseguiram.
- Também conheço, mas fui perseguido mesmo. Fiquei preso quase
um mês, acusado de comunista.
- Li outro dia que o governo já
gastou mais de um bilhão com indenizações e pensões.
- Para mim, vai ser a salvação.
Penso em pedir pouco, uma pensão
pequena que dê para me sustentar.
- O apartamento em que você
mora é seu?
- É, mas a situação está complicada. Comprei-o com parte do dinheiro daquele prêmio. Dei a entrada e
fiquei pagando o resto por mês, mas
faz quatro anos que não pago nada.
- Você é maluco? Como é que deixa de pagar o apartamento?
- Também não pago o condomínio há quatro anos.
- E aí, fica por isso mesmo?
- Bem, já tentaram me tirar daqui, mas um amigo meu, que é advogado, conseguiu sustar a ação. Se
não fosse ele, já estaria na rua. Garantiu que dá pra segurar ainda um
tempo.
- Quanto tempo?
- Sei lá! Seja o tempo que for. De
qualquer modo, já moro aqui de graça há quatro anos. Estou no lucro.
- Mas, cara, se eles te tirarem daí,
onde você vai morar?
- Não sei, mas não me preocupo
com isso. Se for me preocupar, não
vivo mais, não bebo minha cerveja
nem escrevo minha poesia. Quando
chegar a hora, arrumo uma solução.
Mas ainda deve demorar.
- É o que espero, poeta! E que as
musas o protejam!
- E a você também!
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