São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2008

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MARCELO COELHO

Loucos, austeros, dorminhocos


Em livro, presidentes deixam de ser nomes de rua e viram pessoas, por vezes ridículas

PARA MIM , e acho que para muita gente, eles não passam de nomes de rua: Delfim Moreira, Epitácio Pessoa, Wenceslau Braz, Afonso Pena...
Com o fim da República Velha, esses presidentes brasileiros mergulharam no esquecimento, ou melhor, na grande xícara do "café-com-leite" que serve para caracterizar em bloco uns bons 40 anos de vida política nacional.
Mas um livro da historiadora e cientista política Isabel Lustosa, recém-lançado pela Agir, torna bem menos insosso aquele período.
"Histórias de Presidentes" não pretende fazer a reconstituição minuciosa da história republicana.
Com muitas caricaturas de época, transcrições de quadrinhas humorísticas e algumas jóias do anedotário político, o livro se concentra nos hábitos e nas características pessoais dos presidentes que, de 1897 a 1960, ocuparam o Palácio do Catete.
Deixam de ser "vultos" do passado e nomes de rua para se tornarem pessoas vivas, por vezes ridículas, outras vezes surpreendentes. Os austeros e os farristas, os dorminhocos e os madrugadores, os azarados, os indiferentes e os delirantes se sucedem, em vinhetas que dizem bastante a respeito do que era o Brasil daquela época.
Prudente de Morais, por exemplo. O primeiro presidente civil brasileiro assume o cargo em condições das mais modestas. Quando desembarcou do trem que o trazia de São Paulo, diz Isabel Lustosa, "nenhuma manifestação oficial de boas-vindas o esperava na Estação Central do Brasil. Nem banda de música, nem comissão de recepção, nem mesmo um, qualquer um, representante do governo o aguardava".
Flores murchas, panos desbotados e um coreto vazio atestavam que uma comemoração ocorrera dias antes. Era uma homenagem a uma comissão de oficiais uruguaios que visitara o Brasil.
Mais de 20 anos depois, a simplicidade dos costumes ainda era levada a sério. O rei e a rainha da Bélgica, em visita ao Brasil, eram homenageados com um jantar. A rígida praxe republicana desconhecia o uso de medalhas no peito. O monarca distribuíra, na véspera, comendas a todos os convidados. Foi preciso que Epitácio Pessoa, a quem as condecorações não desagradavam, baixasse uma orientação autorizando a novidade.
Washington Luís, para total surpresa de quem só o conhece pelas fotografias, era tido como um sujeito sorridente, bonitão, simpaticíssimo. Hermes da Fonseca, ao que tudo indica um desastre como presidente, estava com 58 anos quando se casou, em pleno mandato, com a bela Nair de Teffé, trinta anos mais moça.
Dançaram no Catete o "corta-jaca", para horror de Ruy Barbosa. "Aqueles que deveriam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas", trovejava o antigo abolicionista no Senado, adotam "a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens".
Tudo parece pequeno, modesto, municipal. Delfim Moreira cogitou de fazer uma criação de galinhas nos jardins do palácio. Já estava sofrendo, é verdade, de demência, mas no fundo a caipirice era comum entre os presidentes da época. Wenceslau Braz, enquanto foi vice de Hermes da Fonseca, passou o tempo todo fora da capital: gostava mesmo é de ficar pescando em Itajubá.
Nostalgia, é claro, não vem ao caso quando se lê sobre essa gente. Tampouco se reitera a imagem de um Brasil pacato e cordial. Atentados (Prudente de Morais quase foi atingido por um tiro, enquanto enrolava um cigarro de palha à janela do Catete), revoltas, bombardeios não faltaram.
Pessoas de carne e osso se engalfinhavam em ódios políticos, entregavam-se a amores, doenças, imaginações e leis. Saem um pouco mais reais do livro de Isabel Lustosa; irreal, mesmo, parece ter sido aquele Brasil que se governava do Catete.
Mais presidentes? Um poeta, Valério Oliveira, acaba de lançar um livro originalíssimo e inquietante pela editora Hedra. Chama-se "Todos os Presidentes", e o título de cada poema faz menção a um presidente brasileiro. Há o "Estúdio Getúlio de Dublagem", por exemplo, a "Padaria João Goulart", ou a "Lotérica Fernando Henrique".
Não se esperem sátiras políticas de conteúdo previsível. São poemas sobre o cotidiano, escritos com grande controle do humor e da confidência. Enigmáticos, austeros, sem comendas nem condecorações, os versos de Valério Oliveira merecem lugar de honra em nossa república das letras.

coelhofsp@uol.com.br



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