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O TEMPO E O ARTISTA
Em entrevista em Paris, o compositor diz que a emergência do rap talvez represente o fim do principal gênero musical do século 20
A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico
DO ENVIADO ESPECIAL A ROMA E A PARIS
Chico Buarque voltou a compor. Disse que está na hora de finalmente se despir e se libertar do
romance "Budapeste", que lançou
no final de 2003 e do qual ele se
ocupou, acompanhando as traduções, ao longo deste ano.
Paradoxalmente, Chico diz,
rompendo um silêncio que vinha
de muito tempo, que a canção, tal
como a conhecemos, talvez seja
um gênero do século passado -e
que o rap talvez seja a sua negação. Paradoxalmente, mais uma
vez, é o rap o que mais chama a
atenção de Chico no cenário cultural brasileiro. "Tem uma novidade importante aí, na periferia se
manifestando dessa forma."
O caminho do músico Chico
Buarque continua, e cada vez
mais, iluminado pelo farol de
Tom Jobim, seu maestro soberano. Mas os olhos do artista estão
mais do que nunca voltados para a
moçada dos morros, onde ele enxerga ao mesmo tempo a desgraça
e a antena do país.
Neste trecho da entrevista, Chico fala ainda sobre Cuba e diz que,
mesmo discordando da ausência
de democracia na ilha, considera
louváveis os esforços para preservar os "valores da revolução".
(Fernando de Barros e Silva)
Folha - Podemos começar falando
da reclusão que você se impôs neste ano.
Chico Buarque - Fiquei até menos
recluso do que estive durante os
dois anos em que escrevi o livro
["Budapeste"]. Este foi um ano de
entressafra. O meu trabalho foi
praticamente acompanhar as traduções, ficar na cola do livro que
saiu no ano passado. Pouca coisa a
mais. Recebi alguns convites para
fazer músicas e não pude atender.
Foi nesse sentido quase um ano
sabático. Embora dê trabalho
acompanhar as traduções.
Folha - Mas é um trabalho de que
você gosta...
Chico - Gostar eu não gosto especialmente. Acho que faço para sofrer menos. Cada tradução é um
sofrimento. Você nunca pode dizer exatamente o que você quer
em outro idioma. Mas, nas línguas
que eu mais ou menos alcanço,
procuro trabalhar o mais próximo
possível do tradutor.
Folha - Por que você preferiu não
falar quando o livro foi lançado?
Receio de induzir a leitura, de misturar o escritor e o compositor?
Chico - Um pouco disso tudo. Na
verdade, neste ano sabático tive
que ficar me explicando. Não tenho prazer especial em ficar explicando o que escrevi, os livros, as
canções, o que seja. Há artistas
que gostam disso e se explicam
muito bem. Eu não sei fazer isso.
Houve também aquela comemoração toda em torno dos meus 60
anos, uma coisa excessiva sobre a
qual eu não tinha muito o que dizer.
"Eu procuro separar o compositor do escritor; entendo que são duas coisas diferentes; mas é uma coisa pessoal minha; é difícil convencer o leitor de jornais do meu sentimento"
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Além disso, não quis falar um
pouco também para evitar que o
livro viesse ocupar o espaço que
eu tenho como compositor de
música popular. Procuro o máximo possível distinguir as duas coisas. Muitas vezes nem isso é possível. Mas apresentar o livro na TV,
tirar fotos, isso confundiria ainda
mais as coisas. Vem cá, mas esse é
o compositor, o escritor? Parece
que fica tudo sendo a mesma coisa, a mesma cara, o mesmo sujeito.
Folha - É visível o
seu esforço de separar o escritor do
compositor. Por
quê?
Chico - Eu procuro separar, sim.
Entendo que são
duas coisas diferentes. O escritor
tem pouco a ver
com o compositor. Mas é uma
coisa pessoal minha. É difícil convencer o leitor de
jornais desse meu
sentimento. Mas é
por isso mesmo
que eu procuro ser
um pouco mais
discreto enquanto
autor de romances. Soma-se a isso
o fato de que o personagem central de Budapeste é discretíssimo.
Achei que seria complicado ir na
contracorrente e desmentir tudo o
que o livro diz. Neste sentido o livro é um pouco... Não vou dizer
que seja autobiográfico, mas o
protagonista tem isso em comum
comigo.
Folha - Já falaram que os personagens dos seus três romances -"Estorvo", "Benjamim" e "Budapeste"- são um pouco alter egos do
Chico Buarque.
Chico - Os livros são muito diferentes. O que complica um pouco
a questão é que o protagonista de
"Budapeste" é escritor. O protagonista de "Estorvo" não era nada, e o de "Benjamim" é um ex-modelo-fotográfico.
Depois de um ano, mais de um
ano, já está na hora de eu me despir, me libertar deste livro. Eu estou na verdade ansiando por isso,
até para escrever outro livro, ou
para escrever novas canções.
Folha - Você voltou a compor?
Chico - Consegui fazer uma canção, para o filme do João Falcão,
"A Máquina", uma adaptação do
livro da Adriana Falcão. Tive outras encomendas, mas não consegui. A única que saiu foi essa.
Folha - Como chama a canção e
como ela nasceu?
Chico - Chama-se "Porque era
ela, porque era eu". É uma variação sobre um dito famoso do
Montaigne [filósofo Michel de
Montaigne (1533-1592)] -"Parce
qu'était lui, parce qu'était moi".
Ele se referia nos "Ensaios" à
grande amizade com o Étienne de
la Boétie, que morreu muito jovem, dizendo que a ligação entre
ambos existia simplesmente "porque era ele, porque era eu". Na
canção, o "lui" [ele] virou uma
mulher. É uma canção de amor.
"O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social acentuada, essa quase violência na forma que a gente vê no rap"
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Por coincidência,
estive em Paris no
mês passado e vi
duas vezes nos
jornais alusões à
frase do Montaigne. A canção na
verdade já estava
pronta.
Folha - E virão
novas canções? Ou
você não sabe ainda o que fazer?
Chico - Tenho
muita vontade de
fazer música. Mas
é difícil planejar.
Parece que se tornou uma coisa
quase automática
-faz um livro,
depois faz um disco e assim vai. Talvez eu mesmo não
queira obedecer esse script que
venho seguindo. Mas sempre foi
assim. Depois de um trabalho
com literatura, até retomar a música leva um bom tempo. O formato é tão diferente da literatura
que a mão fica dura.
Folha - Tem parcerias à vista?
Chico - O Ivan Lins me mandou
uma música muito bonita. Está
aqui comigo, mas ainda não consegui letrar. Fora as canções de
outros autores que tenho comigo
há muito tempo -Guinga, Dominguinhos. São coisas que ficam
ali na gaveta, numa espécie de arquivo a que eu recorro quando estou num processo de criação.
Folha - O que motivou você a fazer essa revisão da sua obra, a aceitar gravar essa série de entrevistas
para os programas da TV?
Chico - A idéia partiu do Roberto
[de Oliveira, diretor dos especiais
com Chico]. Para mim é um pouco incômodo ficar revendo fitas
antigas, falar sobre canções do
passado. Estou, na verdade, cedendo a uma demanda que existe
-e acho que cada vez mais. Isso é
curioso. Talvez tenha razão quem
disse que a canção, como a conhecemos, é um fenômeno próprio
do século passado, tal é a quantidade de releituras, de compilações, de relançamentos, de gente
cantando clássicos -e isso no
mundo inteiro. Os meus próprios
discos são relançados de formas
diferentes pela indústria, em caixas e caixotes, embrulhados assim
e assado, com outra distribuição
das músicas. E há um interesse
muito grande por isso. Se eu lançar um disco novo, vou competir
comigo mesmo. E devo perder.
Folha - Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico...
Chico - A minha geração, que fez
aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a
qualidade da sua
música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor
que seja, por mais
aperfeiçoada que
seja, parece que
não acrescenta
grande coisa ao
que já foi feito.
E há quem sustente isso: como a
ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século
19, talvez a canção,
tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século
20. No Brasil, isso
é nítido.
Noel Rosa formatou essa música nos anos 30.
Ela vigora até os anos 50 e aí vem a
bossa nova, que remodela tudo
-e pronto. Se você reparar, a
própria bossa nova, o quanto é
popular ainda hoje, travestida,
disfarçada, transformada em
drum'n'bass.
Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de
certa forma abafa o pessoal novo.
Se as pessoas não querem ouvir as
músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir
as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção
tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a
canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma
certa defesa diante do desafio de
continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes
acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.
Folha - E o rap? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma
nova configuração social, muito
problemática.
Chico - Eu tenho pouco contato
com o rap. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está
completo. Acho difícil que alguma
coisa que eu venha a ouvir vá me
levar por outro caminho. Já tenho
meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do
rap muito interessante.
Não só o rap em si, mas o significado da periferia se manifestando.
Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu
conheço melhor, mesmo as velhas
canções de reivindicação social, as
marchinhas de
Carnaval meio ingênuas, aquela
história de "lata
d'água na cabeça"
etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de
classe média.
O pessoal da periferia se manifestava quase sempre
pelas escolas de
samba, mas não
havia essa temática social muito
acentuada, essa
quase violência
nas letras e na forma que a gente vê
no rap. Esse pessoal junta uma
multidão. Tem algo aí.
Eu não seria capaz de escrever
um rap e nem acho que deveria.
Isso me interessa muito, mas não
como artista e criador. O que eu
posso é refazer da melhor maneira
possível o que já fiz. Não tenho como romper com isso.
E quando penso na melhor maneira possível, penso imediatamente em Tom Jobim. Ele foi meu
mestre desde o começo. E, depois
que ele morreu, eu sinto paradoxalmente ele mais presente na minha maneira de pensar a música e
mais presente no panorama geral
da música brasileira. Esse disco
agora, que está sendo lançado
["Ao Vivo em Minas", gravado
em 1981], é maravilhoso. Não chamava muita atenção na época um
show de Tom Jobim só com o piano. Isso era visto até com certo
desdém. Alguém teve a boa idéia
de gravar, e agora isso é recebido
como uma jóia, que é. É um pouco
o que eu via. Ele ali no piano, compondo "Águas de Março", "Luiza"
[Chico cantarola: "vem cá, Luiza,
nã nã nã nã..."). Vi muito isso. Ele
não tinha pudor de mostrar as
músicas rascunhadas. Mostrava.
Pedia palpites. Ver o Tom em
ação, e tendo dúvidas, em processo de criação, era formidável -e
difícil. Eu sou incapaz de partilhar
um momento como esse, uma
obra rascunhada, um pedaço de
música ou de letra.
Folha - Ficaram com você canções
inéditas do Tom?
Chico - Ao longo dos anos, ele
me deu várias músicas para fazer
letra e eu não consegui. Não vejo
mais sentido, sem ele aqui, de gravar canções que estão comigo. Só
tinha sentido com ele junto.
Folha - Você tem uma relação antiga com Cuba. O regime de Fidel
Castro vem sendo cada vez mais cobrado pela ausência de democracia, pelas execuções etc. Como você
se coloca nessa discussão?
Chico - Minha ligação com Cuba
se estabeleceu no fim dos anos 70
até a volta das relações diplomáticas com o Brasil. Na época meu
apelido era "el embajador". Eu
participava de um intercâmbio
cultural que envolvia muitos artistas, músicos, intelectuais. Acho
que cumpri bem o meu papel. De
lá para cá, tenho ido menos a Cuba. Perdi um pouco o contato.
Folha - Mas você tem amigos músicos em Cuba.
Chico - Tenho. Amigos hoje um
pouco distantes. É essa a minha
relação com Cuba. Existe, é claro,
para a minha geração, um outro
tipo de relação, afetiva, que vem
da revolução cubana. Nos anos
60, aquilo era muito forte para
nós. Um exemplo de resistência.
Ainda hoje o ditador Fidel Castro,
como gostam de dizer os jornais,
inclusive a Folha... Ele é o único
adversário dos Estados Unidos na
América Latina que resistiu a golpes de Estado e assassinatos e está
ali. Todos os outros foram depostos ou assassinados. Ele sobreviveu a vários atentados. Manteve e
mantém até hoje uma posição altiva. E isso é algo que ninguém deve ignorar e que eu admiro.
Quanto a fuzilamentos ou a prisão de dissidentes políticos, fico
contrariado, porque não gosto e
não concordo com isso. A questão toda é muito delicada. Eu gostaria que Cuba fosse um país democrático. Agora, eu gostaria de
uma maneira, e o Bush gostaria de
outra. Cuba poderia ser hoje o
Haiti. Cuba não é. É claro que me
desagrada a idéia de um partido
único, de liberdades vigiadas, mas
existe ao mesmo tempo a necessidade de um controle para manter
os valores da revolução, que a
meu ver são louváveis.
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