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O TEMPO E O ARTISTA
Para Chico Buarque, um sentimento difuso a favor do apartheid social está hoje tomando conta da sociedade brasileira
"Querem exterminar os pobres do Rio"
João Wainer
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Chico Buarque participa das gravações do programa na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro |
DO ENVIADO A PARIS E ROMA
Há um sentimento difuso quase
a favor do apartheid social no Brasil e existe, por parte das elites, um
ódio visceral não vocalizado em
argumentos contra o presidente
da República operário, que tem
um dedo a menos e fala errado.
São sintomas da regressão social que Chico Buarque enxerga
no Brasil de hoje, um país "cada
vez mais irracional". O governo,
porém, também não sai ileso na
avaliação de Chico. Vem desperdiçando oportunidades históricas
de intervenção social porque assumiu compromissos errados e
cedeu demais.
Um exemplo bem concreto: o
engavetamento da discussão sobre a descriminalização das drogas, segundo Chico a única maneira de enfrentar a questão da
violência ligada ao tráfico no Rio.
"Se o governo Lula não enfrentar isso, não sei quem vai fazer",
diz Chico -e completa: "O Lula
sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz.
Não tem o direito de ignorar".
Neste trecho da entrevista concedida em Paris, o compositor fala ainda sobre o assédio da mídia,
da demanda crescente pelos assuntos fúteis e do fato de se sentir
cada vez mais como se estivesse
permanentemente submetido ao
olhar de um Big Brother.
(FERNANDO DE BARROS E SILVA)
Folha - Você faz parte de uma geração de artistas que foi porta-voz
de ambições grandes em relação às
possibilidades do país. Hoje essas
ambições encolheram muito, não
se vê mais a perspectiva de mudanças sociais como antes. As aspirações foram redimensionadas para
baixo. Como você analisa isso?
Chico Buarque - Hoje em dia a
gente vê pouquíssima margem de
uma mudança social. Ao mesmo
tempo, em países pobres, como o
Brasil é, deveria ser mais do que
nunca premente a necessidade de
uma transformação social. A situação se deteriora e não se enxerga uma alternativa razoável.
Me preocupa que estamos nos
encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo
passa pela economia. É difícil. Eu
tendo a acreditar nos economistas quando dizem
ser impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem
sou eu para opinar? Eu me sinto
muito diminuído,
tenho pouco interesse em me manifestar, da mesma forma que tenho pouco interesse em ler opiniões de leigos, de
gente desavisada a esse respeito.
Às vezes podem dizer coisas interessantes, ou até brilhantes, mas
quando chega a hora de uma discussão mais séria essas opiniões
soam quase como um escárnio,
coisa de poeta.
Folha - Você se vê pressionado a
falar sobre esses assuntos?
Chico - Eu cada vez mais me abstenho por reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância. Aí eu sou realmente modesto.
Não sou modesto em relação ao
que eu faço como artista. Mas, sobre os rumos ou possibilidades do
país, não vejo honestamente que
contribuição eu possa dar.
O que eu posso fazer é só constatar minhas perplexidades, meus
receios diante desse quadro cada
vez mais assustador. Como não se
vê perspectiva de mudança a curto ou mesmo a médio prazo, a sociedade toda é levada a um certo
conformismo, ou mesmo a um cinismo. Na alta classe média, assim como já houve um certo esquerdismo de salão, há hoje um
pensamento cada vez mais reacionário, com tintas de racismo e
de intolerâncias impressionantes.
"Ser reacionário virou de bom-tom; no meu tempo, as moças bonitas eram de esquerda, hoje são de direita"
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O medo da violência na classe
média se transforma também em
repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao
sujeito que tem um carro velho,
ao sujeito que é mulato, ao sujeito
que está mal vestido. Toda essa
indústria da glamourização, de
quem pode, de quem ostenta, de
quem torra dinheiro -enfim, ser
reacionário se tornou de bom
tom. As moças bonitas no meu
tempo eram de esquerda. Hoje
são todas de direita (risos).
Boutades às vezes racistas, preconceitos de classe, manifestações
de desprezo mesmo pelos mais
pobres se tornaram algo muito
comum e socialmente valorizado.
Folha - Estamos diante de uma
grande restauração, uma grande
maré conservadora?
Chico - Exatamente. E diante da
negação de conquistas não só sociais mas também comportamentais. Vejo um pensamento cada
vez mais conservador, até mesmo
na aparência das pessoas, todo
mundo arrumadinho...
Folha - Mas isso convive, no caso
brasileiro, com um governo de um
líder operário, o que poderia ser
visto como uma conquista histórica
na contramão desse quadro. Como
explicar esse curto-circuito?
Chico - Em primeiro lugar, acho
que a eleição do Lula foi uma vitória. Ter conseguido eleger o Lula
talvez tenha sido um último sinal
de que algo ainda possa mudar
para melhor. O outro lado da
moeda é esse de que falei.
"Parece que há vergonha de ter um presidente como o Lula, um operário. Percebo isso em gente próxima"
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O Lula
sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz.
Outros podiam não conhecer,
mas o Lula sabe exatamente o que
é aquilo, não há de esquecer. O
Lula não tem o direito de ignorar
isso. Nessa altura, fico depositando minha confiança pessoal no
Lula, minha esperança de que ele
encontre uma maneira de pelo
menos suavizar esse quadro. Mas
esse é um fardo muito pesado. É
uma esperança talvez demasiada.
De certa forma, o Lula trouxe o
acúmulo de esperanças de muito
tempo para um tempo em que
elas não podem mais se realizar. E
aí não é culpa dele. É por isso que
tendo a reagir às críticas que são
feitas exageradamente ao Lula.
Folha - Parece que você quer evitar jogar água no moinho dos que
dizem que as coisas no governo
não funcionam ou que o Lula é
igual ao Fernando Henrique.
Chico - Não quero jogar, porque
já tem muita água nesse moinho.
Vejo muita gente com ódio pessoal do Lula. E não vejo essa gente
verbalizar com argumentos essa
oposição tão visceral ao Lula. Parece que há uma certa vergonha
de ter um presidente como o Lula,
um operário, um
sujeito com um
dedo a menos e
que fala errado.
Uma vergonha de
ver o Lula representando o país lá
fora. Percebo isso
em gente próxima. E vejo isso na
mídia também.
Na verdade, isso
deveria orgulhar
um brasileiro
-ter um homem
com as origens sociais do Lula na
Presidência da República.
Folha - Isso é um avanço em relação à era tucana?
Chico - Deveria ser também motivo de satisfação ter tido um professor, um sociólogo como o Fernando Henrique na Presidência.
Foi um progresso. Nós vínhamos
de anos e anos de generais, que
não eram eleitos, depois tivemos
o Sarney, acidentalmente, o Collor e o Itamar. A eleição do Fernando Henrique foi um salto qualitativo. É um intelectual, um homem com estofo. Agora, também
não concordo com aquela satisfação que se viu no nosso meio -"é
um de nós, finalmente". Não quero um de nós na Presidência (risos). Não quero ser presidente.
Não gostaria que meu pai fosse
presidente da República. Não é
por aí. Também não acho que o
fato de o Lula não ter curso secundário completo seja em si uma
virtude. Virtude é ele poder ter sido eleito. Ele pode ser um bom ou
um mau presidente. O Brasil ter
eleito Lula contradiz tudo o que
eu disse há pouco a respeito de
um país que parece cada vez mais
estar contra gente como o Lula. E
volto a repetir: não vejo apenas
um sentimento contra o marginal, o traficante, o ladrão. Mas
contra o motoboy, contra o desempregado, contra o sujeito que
não fala direito, isso apesar de a
elite brasileira falar muito mal o
português. Constato um sentimento difuso quase a favor do
apartheid social.
Folha - Você não quis incluir os
seus jogos de futebol e a sua paixão pelo futebol como tema dos
programas que está gravando.
Qual a razão?
Chico - Todo mundo sabe que eu
adoro jogar bola, que eu gosto de
futebol. Já sabem até onde jogo
bola. Então, vira e mexe, aparece
alguém lá para tirar foto, essas
coisas. Aí o futebol vira um acontecimento. Talvez até mais porque eu não esteja fazendo show,
não esteja me exibindo em público, o futebol vira uma ocasião de
exibição, como se eu quisesse me
exibir jogando bola. Não é o caso.
Aquilo não é uma exibição. Por isso achei melhor deixar de lado.
Folha - Ou é uma exibição para
consumo interno, pessoal...
Chico - Pois é (risos). Mas há uma
demanda cada vez
maior para assuntos fúteis. Nos sites da internet isso
é muito evidente.
Qualquer coisa
parece ser assunto. Fulano desceu
em Congonhas
(risos). Isso não é
notícia, evidentemente. Mas tem
que preencher os
espaços, tem que botar foto de artista descendo do avião... Estréia,
então. Eu em geral não vou mais a
estréias, porque muitas vezes a
platéia trabalha mais que o artista.
Tem que estar bem vestido, a sua
roupa vai ser comentada, essas
bobagens todas. Minha empregada outro dia ficou com vergonha
porque apareci com a mesma camisa em dois acontecimentos sociais (risos). Isso deve ter ocorrido
mesmo. Acho que não estava
atento ao meu figurino (risos).
Além disso, você é quase sempre
solicitado a fazer resenhas críticas
no corredor do teatro, tem que
sair de casa preparado para estar
inteligente, dizer se gostou, por
que gostou. Isso quando não enfiam o gravador na sua cara na
saída do cinema para saber o que
você achou da reunião do Copom, se você acha que a taxa de
juros vai cair meio ponto, se o viés
é de baixa ou de alta.
Folha - Você convive com assédios variados há muito tempo. Isso
mudou de uns tempos para cá?
Chico - Piorou muito. Isso não
era assim. No tempo em que nós
andávamos expostos, raramente
acontecia de sair uma nota dizendo "fulano foi visto bebendo em
tal bar". Todos os dias nós estávamos no Antonio's -o Vinícius de
Moraes, o Tom, o Rubem Braga,
eu. Falavam-se barbaridades,
brincava-se muito, bebia-se à beça. Se alguém estivesse por perto
anotando, acabava, o Antonio's
fechava. Nós andávamos por aí.
Ninguém fotografava. Hoje parece que vivemos numa espécie de
Big Brother permanente.
Folha - O Rio, onde você mora há
muito anos, também mudou muito
de cara, em termos sociais. Na sua
música, quando a gente pega, por
exemplo, dois sambas como "Estação Derradeira", de 1987, e "Carioca", de 1998, percebe-se com clareza essa mudança. Os personagens
são outros, a atmosfera é outra, a
barra é muito mais pesada, apesar
dos muitos encantos da cidade. Como você sente isso no dia a dia?
Chico - O clima hoje na cidade é
muito mais pesado. Para não falar
lá de cima, na própria zona sul já
há territórios demarcados. Eu conheci a praia como um espaço democrático. Hoje em dia já se sente
no ar a idéia de que vai existir logo
uma fronteira entre Ipanema e o
Leblon. Tem um pessoal na altura
do Jardim de Alá [moradores de
um cortiço na rua do canal que divide Ipanema e Leblon] que desce
ali e ocupa a praia. Vira uma paranóia, vira uma hostilidade com
esses garotos que ficam circulando ali. Assaltar na praia é o pior
negócio que existe. De vez em
quando acontece. No dia seguinte, vem a polícia e enfia os meninos no camburão, quando não faz
coisa pior. Eles querem tirar da
praia, sumir com eles dali. Não vai
ter onde botar esses meninos.
As soluções sugeridas para isso,
as coisas que eu leio nas cartas dos
leitores dos jornais, em geral são
fascistas. Virou moda responder a
quem defende os direitos humanos com o trocadilho infame dos
"humanos direitos" contra os vagabundos que nos retiram o direito de andar livremente pelo calçadão. Isso quando não se defende
abertamente a pena de morte, a
reclusão dos garotos de rua, a diminuição da maioridade penal, a
prisão perpétua. Eles querem exterminar com os pobres do Rio.
Se puderem sumir com aquilo tudo -ótimo. Os meninos são os
inimigos, são os nossos árabes,
são os nossos muçulmanos.
Folha - E o problema cada vez
mais grave do tráfico, como fica?
Porque o tráfico virou talvez a única perspectiva de ascensão social,
ou de possibilidade de um enredo
vitorioso na cabeça de um menino
morador da favela.
Chico - É. Assim como o futebol
ou o pagode, o
tráfico virou um
veículo de ascensão, de chance de
ter dinheiro, poder, mulheres e
fama, mesmo ao
preço de uma vida muito curta. É
o que se reserva
para um menino
sem estrutura familiar, sem emprego, sem quase
nada. Eu não vejo
outra saída para a violência ligada
ao tráfico senão a descriminalização de alguma forma, não sei se
total ou parcial, das drogas.
Lembro de ter lido nos jornais
que o ministro da Justiça, Márcio
Thomaz Bastos, era favorável a
essa idéia quando tomou posse.
Não sei porque o governo não levou e não leva essa discussão
adiante. Isso pode ser desgastante
para os índices de popularidade
do governo, talvez por isso ninguém toque no assunto.
Talvez pensem que não é o momento de enfrentar o problema
em razão de alianças e de compromissos com os evangélicos do
PL, essas coisas. Mas se não enfrentarem o problema agora,
quando é que vão enfrentar? Se o
Lula não enfrentar... Isso tem a
ver com tudo o que a gente estava
falando antes, com o rap, com o
que os garotos da periferia estão
falando, com a falta de perspectivas, com a violência toda que está
ali, manifesta nas canções.
O Lula sabe muito bem o que é
isso. Se não encarar isso, não sei
quem vai fazer. Não entendo por
que não se discute isso a sério.
Folha - Você acha que o governo,
para além dos constrangimentos
econômicos, está deixando escapar
entre os dedos oportunidades históricas de intervenção social?
Chico - Acho. Acho. Entendo os
compromissos, o FMI, a dívida
etc. Tudo bem. Mas isso não tem
nada a ver com essas outras omissões. Ou é isso ou é a Bíblia.
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