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MARCELO COELHO
Um papa astucioso
Papa Bento 16 conhece bem a psicologia de um ateu, com quem dialoga em sua última encíclica
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DISCORDO COM todas as forças
da minha razão das doutrinas do Vaticano. Mas uma
coisa não posso negar: Bento 16 é um
intelectual respeitável, que fala uma
linguagem compreensível para os
que discordam dele.
Leio sua última encíclica, disponível na internet (www.vatican.va),
e intitulada Spe Salvi. É o ponto de
partida para uma bela e astuta ruminação em torno de temas que
qualquer pessoa irreligiosa haverá
de achar interessantes.
Bento 16 faz uma pergunta dramática: será que queremos, de fato,
uma vida eterna? Ele sabe que ninguém tem vontade de morrer. Mas
uma vida eterna... Não seria uma
chatice monumental?
Lendo esses primeiros parágrafos, vi que o papa conhece bem a
psicologia de um ateu. É com um
ateu, na verdade, que ele dialoga.
Sei que você despreza a vida eterna. Talvez você pense que será uma
sucessão infinita de beatitudes no
tempo. A velha imagem do sujeito
tocando harpa num céu azul.
Mas pense em outro tipo de experiência: aqueles momentos de
plenitude que, quando apaixonados ou felizes, sentimos ao contemplar o mar, o céu, uma criança
dormindo. Imagine-se esse instante perfeito, fora do tempo, do tempo humano; é isso a salvação.
Pode-se acreditar ou não na promessa. Mas é mais sedutora do que
uma infinitude de horas num paraíso desinteressante.
A encíclica de Ratzinger prossegue. Acreditar na promessa de salvação não é simplesmente achar
que ela vai acontecer. A própria
crença já muda as coisas. Não se
trata de ter fé numa simples "informação", transmitida pelo Evangelho, mas de engajar-se numa "performação".
A raposa do Vaticano utiliza, nesse momento, os conceitos do filósofo Austin (1911-1960). Austin
distingue diferentes "atos de linguagem": há o informativo, pelo
qual alguém diz algo a respeito do
mundo, e o "performativo".
Na categoria dos atos "performativos" estão frases que, como diz
seu livro mais famoso, "fazem coisas com palavras". Por exemplo:
"Está encerrada a sessão". "Eu os
declaro marido e mulher". Uma
vez pronunciada a frase, algo real
aconteceu.
Pois bem, o Evangelho, segundo
Ratzinger, também é "performativo". Afirmar a salvação da alma
também "faz coisas" com uma frase. Aí começo a discordar. Um
"enunciado performativo" só funciona quando a autoridade que o
enuncia é reconhecida por todos.
Se o prefeito Kassab achar que é o
novo Messias e declarar que todos
os paulistanos estão salvos, tenho o
direito de considerar que seu
"enunciado performativo" não
passa de um delírio.
Mas é claro que o papa está convicto do poder performativo da palavra de Cristo. E não está totalmente errado nisso: os Evangelhos
têm um poder de transformação
maior do que qualquer discurso de
Kassab.
Mas não se trata, para Ratzinger,
de uma competição entre autoridades de diferente estatura. O
"enunciado performativo" envolve, diz o papa, mais do que uma
convicção individual. E nisso ele
está certo: trata-se de um vasto
acordo coletivo.
Boa deixa para o papa condenar
o protestantismo. Reduzindo a
questão da fé a uma questão de
persuasão pessoal, os protestantes
se tornam incapazes de aprender o
conteúdo transformador da fé
cristã.
Trata-se, diz o papa, de uma distorção moderna. A partir do século
16, começou-se a considerar o programa do cristianismo como "uma
busca egoísta da salvação que se recusa a servir os outros".
Qual a raiz dessa distorção? Ratzinger agora mostra suas garras. A
raiz está na idéia cientificista de
Francis Bacon, retomada por Kant
e Marx, de que o homem poderá
dominar a natureza. E com isso poderá refazer, em novos termos,
uma aliança com Deus, livre do pecado original, confiante na razão.
Falta espaço para explicar o resto. A encíclica do papa merece ser
lida. Do meu ponto de vista, nada
se sustenta. Ratzinger confunde
razão com ciência e liberdade com
pecado.
Posso dar exemplos de liberdade
que não se voltam para o mal (este
é um dos preconceitos mais arraigados no pensamento conservador, que, em nome da liberdade,
compactua com o mal), e posso
acreditar que o ser humano, apesar
de falível, tem na razão de que dispõe um instrumento melhor do
que a fé. Mas o assunto é longo, e a
encíclica de Ratzinger não é a pior
leitura que se possa fazer às vésperas de 2008.
coelhofsp@uol.com.br
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