São Paulo, sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Quem inventou a prosperidade?


Não devemos maldizer o ano que passou nem esperar maravilhas do ano que vai chegar

O ANO podia ter sido pior -aliás, tudo nesta vida e na outra podia ser pior.
Sempre impliquei com o lugar-comum que obriga a humanidade a maldizer o ano que passou e a bajular o ano que chega, desejando-o próspero. A verdade é que todos os anos que já maldizemos, íntima ou publicamente, todos os anos que ficamos aflitos em vê-los para trás, todos esses anos - repito - foram prósperos no início e acabaram malditos, como os demais. Quem inventou essa prosperidade?
Certo que, de uma forma ou outra, há anos piores do que os outros também piores. E é possível até que existam anos bons, desses que deixam saudade na gente. Ainda não tenho certeza, mas acho que esse ano de 2008 não foi tão ruim assim, apesar das desgraças acontecidas e das maravilhas que inutilmente esperávamos. Tivemos muito assunto na mídia, numa velocidade que não deixou tempo à monotonia: a peteca sempre está em jogo, para lá e para cá. E é nisso que reside a faina humana: não deixar a dita cair. No plano pessoal, por mais desventuras que tenhamos tido, por mais perdas e danos que entraram no rol das nossas desditas, sempre sobrou o saldo final e positivo da própria vida, a vida que um dia nos será tirada e que, enquanto vida, é o valor maior e, na verdade, único.
O diabo é que misturamos tudo, trocamos as bolas e desejamos que a vida seja uma coisa arrumada como as antigas farmácias homeopáticas, uma porção de vidrinhos rotulados para cada caso específico, "alium sativum" para os resfriados, extrato de beladona para os males hepáticos, tudo tem remédio e tudo vale a pena, mesmo que, ao contrário do poeta, a alma seja pequena.
A realidade de cada ano, somada à realidade de todos os outros anos, destaca que o importante é a vida em si, a capacidade de sentir o sol sobre a pele, viver a esperança de cada manhã e a resignação de cada tarde.
Se abrirmos o jornal, tomamos conhecimento da sordidez do mundo, na qual colaboramos de alguma forma, mas não da vida. Nisso está a sabedoria e a paz: diferenciar o mundo, separando-o da vida.
O mundo não tem mesmo remédio, é o que sabemos, choramos e lamentamos. Vivemos dentro dele (a alternativa, além de problemática, pode ser pior) e, por isso, o melhor que se faz é suportá-lo, criticá-lo e circunstancialmente gozá-lo. Com a vida, o furo é mais em cima. Ela é carne e sangue, e basta que o sangue vivifique a carne e estamos em condições de usufruir a maravilha que ela representa: o sabor do abacaxi, o cheiro do mar, a carícia da brisa (estou caindo nos piores lugares-comuns, mas vou em frente).
Por isso mesmo, não devemos maldizer o ano que passou nem esperar maravilhas do ano que vai chegar. O primeiro nos manteve vivos, embora tenha tornado o mundo pior. E o novo será a mesma coisa, continuando a desgraçar o mundo (ele bem que merece), desde que conserve o abacaxi, o mar e a brisa.
Como as crianças que antigamente escreviam cartas ao Papai Noel pedindo isso ou aquilo, cada um terá, envergonhadamente, sua própria lista de esperanças ou devaneios.
Uma lista gradualmente mais modesta e menos possível. Há uma versão do corcunda de Notre Dame que, ao arranjar o emprego de sineiro, escreveu para casa: "Mamãe, estou muito feliz porque arranjei um ótimo emprego numa bela catedral aqui em Paris...".
Tive um amigo que sofria de espantoso furor sexual, a cada ano abria um caderninho com o nome e as características das mulheres que desejava e esperava conquistar, lista que foi minguando com o tempo até se resumir numa enfermeira gorda que o atendia na Casa de Repouso onde se abrigara.
Ao contrário dele, não costumo fazer planos para o ano que chega nem para a vida em geral. O que acontecer será lucro, desde que aconteça.
Um autor escandinavo -não lembro o nome dele, é um nome complicado, com seis consoantes, um trema, dois acentos circunflexos e uma única vogal- conta a história do sujeito que ia ser enforcado. Ao sentir que o carrasco botava a corda em seu pescoço, teve um pensamento que o consolou: "Amanhã, não precisarei escovar os dentes".


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