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"A modernidade quis organizar a agonia"
Para filósofo, ruiu a utopia da solução científica da existência: "O ser humano é agonia, não é alguma coisa que tenha
solução"
Pondé diz que promessa de felicidade ligada ao iluminismo falhou e que há
um "afrouxamento da certeza moderna"
DA REPORTAGEM LOCAL
A seguir, Luiz Felipe Pondé
diz que o momento é propício à
dúvida conservadora porque há
hoje um "afrouxamento da certeza moderna".
(RAFAEL CARIELLO)
FOLHA - Para os modernos, o problema está sempre fora do homem?
LUIZ FELIPE PONDÉ - A tentativa de
transformar o problema humano em político-social é já fruto
da busca de você afastar o mal
que o caracteriza e dizer que o
problema é o grupo social, que
poderia ser modificado. O problema é sempre o contexto, a
família, a classe social...
O pensamento conservador
tem uma urticária enorme dessa idéia de progresso, sabe?
Que nós vamos construir muitas estradas, vamos crescer
economicamente, as pessoas
vão ficar com muitas TVs em
casa, e aí a vida vai melhorar.
FOLHA - É isso que o separa ao mesmo tempo de esquerdistas revolucionários e de liberais reformistas?
PONDÉ - É aí que eles se encontram. A idéia de que você pode
construir uma engenharia social para melhorar o homem, a
idéia de que você pode identificar a natureza humana e mexer
nela. É o que os ingleses chamam de teorias de gabinete.
Faço aqui uma teoria sobre como melhorar o homem. Apago
toda a Idade Média, toda a história da humanidade, e acho
que nos últimos 200 anos é que
a gente entendeu o ser humano. Isso é típico do que causa risadas numa mente conservadora. A idéia de que um cara
que escreveu um livro há 150
anos evidentemente sabe mais
do que Aristóteles.
Como dizia [Edmund] Burke
[1729-1797, filósofo crítico da
Revolução Francesa], "a sociedade é um contrato entre os
mortos, os vivos e os que não
nasceram ainda". Isso implica
que não devemos romper com
o passado como se a adolescência fosse o paradigma da vida.
Com relação aos "que não
nasceram ainda", isso aponta
para as fronteiras da crítica
conservadora: usaremos embriões para fabricar cremes de
beleza. Não temos recursos
morais no comportamento humano que indiquem qualquer
capacidade de não fazer isso, se
isso nos for "útil" -o direito
não preserva nada por mais de
40 anos. Somos utilitaristas ferozes e hipócritas.
Nossa atenção deve se concentrar nos sucessos da ciência.
Isso não significa negar a pesquisa científica, mas não idolatrá-la. A dúvida conservadora
deve chamar atenção para os
delírios de um Estado sempre
autoritário, mesmo que se diga
democrático, para a necessidade de rompermos com esse integralismo da felicidade -existem coisas muito mais importantes do que a felicidade-, enfim, que ensinemos aos mais
jovens como a vida é um risco
eterno, como o ser humano é
uma espécie precária, violenta
e atormentada pela falta de
sentido e como fracassamos na
utopia idealista do progresso.
FOLHA - O que o pensamento conservador crê que possa estar sendo
perdido com a modernidade?
PONDÉ - Faz parte da dúvida
conservadora a idéia de que a
única forma de fazer frente ao
poder são várias formas de poder -brigando entre elas. Por
isso que a Idade Média foi tão
boa, no sentido de que nela você não tinha nenhuma instância de poder absoluto.
A modernidade é uma adolescente, uma menina de 14
anos, que chega a um lugar e começa a organizar. Essa é a imagem. Imagine essa menina, que
entra na empresa e começa a
administrá-la. Joga fora o que
foi feito até hoje, começa a inventar todos os procedimentos.
É a modernidade. Perde-se o
quê nesse processo? Perde-se o
que uma adolescente de 14
anos perderia administrando
uma empresa. Quase tudo.
FOLHA - A literatura, a arte, são lugares privilegiados de aparecimento
da reflexão conservadora?
PONDÉ - A arte não totalmente,
na medida em que ela é tomada
por essa febre da vanguarda. A
ruptura da ruptura da ruptura.
Isso é quase uma piada. Mas a
literatura tem um espaço resguardado porque, como não
tem de apresentar resultados,
nem progride, ela não se submete de todo à lógica moderna.
Sim, você pode pegar um
Kafka, um Dostoiévski, uma série de autores onde esse mal-estar com a modernidade aparece. Neles, o que me importa é
em que medida o que escreveram serve para eu compreender o mundo, por que a vida é
quase sempre uma porcaria,
por que, apesar de quase todas
as provas em contrário, a maioria das pessoas insiste em viver.
FOLHA - No seu artigo sobre Dostoiévski, o sr. trata do problema do
mal. O mal é o grande recalcado da
modernidade?
PONDÉ - Acho que sim. Talvez
sim. No entanto o ser humano é
capaz de sobreviver a esse totalitarismo de "o homem é bom",
e "o mal é contextual". Apesar
de Rousseau, o ser humano ainda é capaz de perceber que, na
realidade, o mal está nele. Se
dissolvo o mal num sistema social, então não sou mal. O mal é
concreto em toda parte, embora às vezes tenhamos dificuldade de defini-lo. A questão é em
que medida o recalque do mal
na realidade não se presta ao
ser humano construir uma
neurose narcísica. É óbvio que
o mal existe. O que talvez a gente possa pôr em dúvida é se
existe o bem. Esse sim é mais
difícil de compreender.
FOLHA - O conservadorismo parece
ganhar força hoje -e isso, no Brasil,
é claro. A que se deve isso?
PONDÉ - Antes de tudo a dúvida
conservadora é caracterizada
pela idéia de que a gente toma
sempre de dez a zero da vida. O
momento pode ser propício
justamente pelo afrouxamento
da certeza moderna.
FOLHA - A promessa parece ter falhado.
PONDÉ - Sim, nesse sentido da
utopia: a reformulação científica do humano, a administração
da vida, a solução científica da
existência. O que caracteriza a
modernidade é a utopia de que
a gente vai organizar a agonia.
Não resolvem. O ser humano é
agonia. O ser humano não é alguma coisa que tenha solução.
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