São Paulo, terça-feira, 27 de janeiro de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O verdadeiro Benjamin Button


Mais triste é morrer vazio como um bebê, sem levar experiência ou memória alguma

O TEMPO é o melhor crítico que existe. Na minha adolescência, mergulhado em Hemingway e Fitzgerald, minha preferência era Hemingway: lendo as suas narrativas de frases breves e secura ornamental, eu imaginava-me como o velho Ernest, em caçadas africanas ou touradas espanholas, bebendo de manhã à noite.
Havia uma certa urgência vital na prosa de Hemingway, o deslumbramento típico das primeiras experiências, a celebração imediata do sensorial. E eu admito que o ritmo das suas frases, rigorosamente melódicas e pontuadas, acabaram por passar para a minha corrente sanguínea. Digo mais: não existe nenhum jornalista que, consciente ou inconscientemente, não tenha absorvido a música de Hemingway. Então amadurecemos. Hemingway continua no seu sítio e, uma vez por outra, regressamos a ele para relembrar a frescura dos primeiros tempos. Os diálogos, por exemplo, continuam magistrais, apesar da ilusão de realismo que transportam: lidos com a voz da consciência, até acreditamos que as pessoas falam assim, finalizando cada frase com um "meu querido" ou "minha querida". Obviamente, não falam. Basta ler tudo em voz alta para perceber o artifício.
Mas é então que Fitzsgerald regressa para nos assombrar. A elegância, o refinamento e o humor de Fitzgerald, ausentes em Hemingway, começam lentamente a ocupar o espaço do seu colega de geração. E se os romances de Fitzgerald nunca precisaram de qualquer reavaliação crítica ("O Grande Gatsby" ou "Suave É a Noite" são intemporais), é triste como por vezes nos esquecemos dos seus contos.
Um deles tem sido falado ultimamente por causa de filme indicado ao Oscar. Intitula-se "O Curioso Caso de Benjamin Button" e eu voltei a lê-lo numa velha edição da Penguin que julgava perdida. A história do conto, tal como a história do filme, é conhecida: Benjamin nasce velho e morre bebê. O tempo anda ao contrário para ele. Mas as semelhanças terminam aqui: o conto de Fitzgerald, ao contrário do filme de David Fincher, é essencialmente um prodígio de humor sem qualquer pretensão filosófica ou sentimental.
Esse humor só é possível porque o Benjamin Button de Fitzgerald não manifesta qualquer dissonância entre o corpo e a mente. No conto, Benjamin nasce fisicamente velho mas também nasce com os hábitos e os conhecimentos de um velho. Ele tem rugas, barba branca, ossos minados pelo reumatismo. Mesmo no berço, ele fala com propriedade, fuma charuto e gosta de ler a "Encyclopaedia Britannica". E se o pai se horroriza com a primeira visão do filho, jamais pensa em abandoná-lo.
Pelo contrário: a família aceita a aberração e as visitas até dizem que ele é a cara chapada, não do pai mas do avô. O rapaz cresce, ou seja, rejuvenesce. Aos 18, embora tenha cara e cabeça de 58, conhece donzela compatível para casar. Casam. Mas Benjamin rapidamente descobre que fez mau negócio: se ele fica cada vez mais jovem, e mais enérgico, e até mais irresponsável, a mulher vai ficando mais velha, e mais cansada, e mais quadrada. As discussão entre ambos são hilárias.
Benjamin termina seus dias com corpo e cabeça de criança, a brincar com o neto, como se fossem dois colegas de infantário.
O diretor David Fincher não respeitou o conto de Fitzgerald e preferiu uma história grandiloquente sobre a implacável fugacidade do tempo. Ou, se preferirem, sobre a crueldade do destino de Benjamin Button, que poderá viver a sua história de amor na breve intersecção da sua meia-idade com a meia-idade da sua amada, até ao momento em que ambos têm que se afastar: ele, a caminho da infância; ela, a caminho da velhice.
O resultado é tépido, arrastado, sem propósito ou fulgor, com dois atores manifestamente à deriva.
Uma pena. Tivesse Fincher e os seus roteiristas respeitado o material original, teríamos um filme poderosamente onírico, divertido e até politicamente incorreto, capaz de desafiar as convenções da idade e das relações entre as gerações e os sexos.
E se David Fincher, apesar de tudo, desejasse ainda uma mensagem final, ela também é sugerida no conto de Fitzgerald quando Benjamin Button morre como um recém-nascido, física e mentalmente falando.
Porque talvez essa seja a lição maior: mais triste do que deixar o nosso mundo de experiências e memórias quando a velhice se instala, é morrer vazio, como um bebê, sem levar desse mundo experiência ou memória alguma.

jpcoutinho@folha.com.br


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