São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

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OPINIÃO

Compositor ocupa lugar único na música popular brasileira


SUA FIGURA CABOCLA INDICAVA INTEGRIDADE, NOBREZA E DISTINÇÃO


ROMULO FRÓES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nelson Cavaquinho era um rei. Um rei vadio que vagava por lugares decadentes, em um Rio de Janeiro de costas para o mar, com suas ruas estreitas e bares apinhados de vagabundos, com quem dividia, além da bebida, sua música e solidão.
Um andarilho bêbado que bem poderia ser tomado por um mendigo, não fosse tudo em sua figura cabocla de cabelos brancos indicar integridade, nobreza e distinção. Toda a força da música de Nelson Cavaquinho nasce dessa contradição. Da possibilidade de haver beleza nesse conjunto, a princípio, tão estranho e desagradável.
Seu violão beliscado, que parece ser tocado com um alicate, sua voz rascante e seu pouco fôlego, que determina o intervalo melódico dividindo os versos em lugares inesperados. Tudo está a ponto de se quebrar.
Muitas de suas músicas não se resolvem, ou melhor, se resolveriam se quisesse, na primeira parte, sempre mais nítida. Quando alcançam a segunda parte, parecem esquecer de onde partiram. Tomam um caminho surpreendente, que mantém a melodia em suspensão, obrigando seu retorno à primeira parte, fazendo a canção girar em círculos.
Perdemos a referência. Como se Nelson fosse despertado de seu cochilo, para retomar sua patrulha desorientada das ruas. Sem saber de onde e por que veio, nem para onde está indo.
Essa falsa incapacidade técnica, aliada a um profundo amadorismo, posiciona Nelson em um lugar único na música popular brasileira. Mas podemos, se quisermos, mesmo com sua enorme especificidade, identificá-lo com a face menos luminosa do samba. Dos sambas de cadência lenta, tristes.
Característica presente em sua música que o faz se alinhar a outros compositores. Mais claramente, a outros dois grandes artistas devedores de sua poética: Batatinha (1924-1997), compositor que pode ser considerado seu duplo baiano, e Cartola (1908-1980), seu grande parceiro.
Mas também em relação a eles Nelson se mantém original. Batatinha e Cartola, cada qual à sua maneira, procuram driblar a tristeza.
Batatinha, com seu acesso direto aos sentimentos, tratando-os pelo nome, negociando uma saída. E Cartola, protegido de sua enorme sabedoria e experiência, refugiando-se na beleza possível de sua vida dura.
Diferente dos dois, Nelson aceita a derrota. Não teme o sofrimento nem pensa torná-lo suportável. Encara a tragédia como natural.
Em texto sobre Nelson, Nuno Ramos diz que "ele é nosso contato imediato com aquilo que deu profundamente errado em nós". Desse encontro sem esperança, ansiedade ou promessa de redenção, forjou sua música inigualável. Tão bela e perturbadora como nunca, antes ou depois, se viu.

ROMULO FRÓES é cantor e compositor.


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