São Paulo, quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

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Hatoum cria sua Cidade Encantada

"Órfãos do Eldorado" foi feito sob encomenda para a coleção "Mitos" e mescla história de seu avô e lendas amazonenses

Conflitos familiares, outro tema caro ao escritor, também fazem parte do enredo da novela, que será lançada na segunda-feira

Caio Guatelli/Folha Imagem
O manauense Milton Hatoum, 55, que lança seu primeiro livro após o premiado "Cinzas do Norte"

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

Vencedor de três Jabuti, entre outros prêmios literários de prestígio, o manauense Milton Hatoum, 55, vai entregar ao seu leitor uma encomenda na próxima segunda, 3 de março: seu mais novo livro, "Órfãos do Eldorado". A novela integra a coleção "Mitos", que a Companhia das Letras lança em "pool" com editoras de mais de 30 países. Único brasileiro do elenco de autores, Hatoum, no entanto, quase não aceitou a missão.
"Se eu já não tivesse o projeto na cabeça, talvez não tivesse feito. Porque é difícil fazer um livro por encomenda. Antes de escrever "Cinzas do Norte", eu já tinha as idéias. Fiz uma versão crua, inicialmente, e descartei, pois ela tinha a perspectiva de uma árvore. E a novela é uma palmeira, se comparada a um romance, que é uma seringueira. A novela é mais enxuta, concisa", diz o escritor à Folha.
Hatoum retomou o projeto em 2005, quando já dava um ponto final a "Cinzas do Norte". O mito explorado pelo autor está no título do livro: o Eldorado. Que aqui, no entanto, mais se parece com um paraíso perdido. A história se passa entre a Primeira e a Segunda Guerras, na Amazônia, cenário recorrente de sua ficção. Entre Manaus, Belém e a fictícia Vila Bela, o personagem Arminto assiste à decadência econômica da Amazônia, sofre a perda de um amor e da herança do pai.
Segundo Hatoum, a inspiração para a novela veio de uma história de amor contada a seu avô por um "homem velho".
"Vila Bela é uma cidade inventada, mas tem muitos traços de Parintins, que fica no médio Amazonas. Estive lá nos anos 60 e encontrei o mesmo velho que falou com meu avô, mas ele se recusou a me contar. Escrevi a novela a partir da memória da história contada pelo meu avô e do mito amazonense da Cidade Encantada", conta Hatoum, que fez pesquisa sobre lendas amazonenses e viajou a Parintins.
"Mas a pesquisa é perigosíssima. Li vários livros sobre mitos, mas pincei poucas coisas. Eu disse aos editores que não queria escrever um relato sobre o mito, mas que ele fosse pretexto para a ficção. Porque já há tantos relatos bons sobre os mitos e a Amazônia. Preferi estudar e entender um pouco, porque faz parte da nossa alma antropofágica devorar aquilo que tem um certo sabor, um saber com sabor, e aproveitar."

Regionalista x universal
A recorrência à Amazônia não deve ser vista como regionalismo, ressalta Hatoum. Para ele, seria "vício e preguiça" encarar a novela de tal forma.
"A minha matéria-prima é a infância e a juventude, que não foram no Brooklin, no sertão do Nordeste ou em São Paulo; foram em uma Manaus urbana. E é isso que um olhar apressado pode não perceber. Que a minha visão do Amazonas é urbana. Falar da floresta teria uma outra perspectiva que está um pouco longe da minha própria vida. Então o que fiz: me apropriei de alguns mitos, que são, no fundo, universais."
Hatoum compara sua Cidade Encantada, submersa no rio Amazonas, ao mito do Eldorado e também à Atlântida, entre outras "utopias de uma vida melhor". A diferença, diz ele, é que no Amazonas tal mito ainda é comentado e acreditado pelas populações ribeirinhas.
"E há uma percepção muito ambígua que eles têm do mito, porque alguns dizem que acreditam, outros dizem que não crêem, mas já ouviram falar de alguém que esteve na Cidade Encantada. Então existe uma negação do mito e ao mesmo tempo uma afirmação dele na fala dessas pessoas. Achei interessante recorrer a alguns mitos da Amazônia para compor os personagens. E para dizer que, no fundo, nossa alma é inconstante. O que aterrorizava os colonizadores, tanto os soldados quanto os religiosos, era exatamente essa inconstância da alma selvagem. A volubilidade dessa América."
Hatoum, que vive de literatura desde 2000, quer lançar em breve uma compilação de contos e outras duas de crônicas e ensaios. Diz que o momento é de "ressaca e luto" pela conclusão da novela. Mas tem idéias para dois romances, completamente diferentes, sendo que um deles não se passa no Brasil, uma conseqüência dos anos vividos na Europa e Estados Unidos. "Seria um salto radical. Mas estou em cima de dois formigueiros. Vamos ver o que me dá mais formigamento, o que me deixa mais perplexo."


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