São Paulo, quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

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MARCELO COELHO

No matadouro americano

Dos índios de cem anos atrás aos mexicanos de hoje, que pedem água, a diferença não é grande

PERDE-SE RAPIDAMENTE a conta dos assassinatos filmados pelos irmãos Joel e Ethan Coen em "Onde os Fracos Não Têm Vez", ganhador do Oscar deste ano. Mas um crime em especial me chamou a atenção.
Não tem nada a ver com a trama em si. Aparece apenas numa página de jornal, e seu relato é lido em voz alta pelo xerife Tommy Lee Jones a um auxiliar.
Os proprietários de um lar de velhinhos, conta o xerife, costumavam matar seus clientes para ficar com o dinheiro da pensão. Enterravam os corpos no quintal.
Nada que impressionasse o cansado xerife, a não ser pelo fato de que, antes de serem mortos, os velhinhos eram torturados. "Para quê isso?", pergunta o xerife, que depois especula: "Talvez a televisão do lugar estivesse quebrada."
O crime só foi descoberto, prossegue a reportagem, porque um velho fugiu. Foi encontrado na rua sem roupas, usando apenas uma coleira de cachorro.
Foi só aí que a vizinhança percebeu, continua o xerife. "Ninguém notou nada de estranho enquanto os donos do asilo cavavam sepulturas no terreno..."
A estranheza e a gratuidade do mal estão presentes o tempo todo em "Onde os Fracos Não Têm Vez".
Mas a notícia de jornal lida pelo xerife é capaz de despertar outras associações no espectador. Estamos, sem dúvida, mais próximos de Abu Ghraib, onde prisioneiros iraquianos foram torturados (e fotografados) por soldados dos Estados Unidos, do que da paisagem da fronteira entre o México e os Estados Unidos, lindamente descortinada nas primeiras cenas deste filme policial.
Talvez não seja despropositado aprofundar um pouco essa associação. Como é freqüente nos filmes dos irmãos Coen, uma operação desonesta, mas relativamente simples e segura, logo começa a dar errado.
Pessoas mais ou menos comuns vêem-se diante da oportunidade de dar uma boa virada na vida -mas as coisas são sempre muito mais complicadas do que se pensa quando padrões ordinários de decência são rompidos.
A idéia da "big mess", da grande trapalhada, está presente com tanta intensidade no filme quanto nas notícias sobre a Guerra do Iraque. Parece ser resultado menos de um acidente do que de uma predestinação.
"Onde os Fracos Não Têm Vez" reúne entre seus personagens pelo menos três veteranos do Vietnã; quanto ao xerife, provém de uma longa linhagem de combatentes no front da segurança interna. Por sua vez, dos índios de cem anos atrás aos mexicanos de hoje, que pedem água e piedade em espanhol, a diferença não é grande; acrescentar vietnamitas e iraquianos à lista não seria nada fora do normal.
Restam, entretanto, os americanos normais, cujas breves aparições talvez sejam o melhor do filme. Balconistas, granjeiros, gerentes de hotéis, ao mesmo tempo desconfiados e prontos para ajudar, estão entre as vítimas preferenciais do psicopata encarnado por Javier Bardem, inesquecível com seu olhar parado, seus modos de zumbi e seu equipamento homicida, próprio ao abate de reses num matadouro.
Não sei se este é o melhor dos filmes dos irmãos Coen, ou dos que concorriam ao Oscar. O final me deixa embatucado, e parece que muita coisa ainda está por acontecer. Talvez esteja mesmo: a história americana nunca cessa de colher, numa espécie de cortejo de autômatos, vítimas sem conta.
Uma das grandes qualidades de "Onde os Fracos Não Têm Vez" é justamente esse "olhar parado", que os irmãos Coen parecem ter tomado de empréstimo ao assassino que inventaram no filme.
Embora o efeito de câmeras frenéticas como as de "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite" seja muito bom, é certamente um sinal de maturidade estilística dos irmãos Coen a opção de refletir tanta violência com o máximo de objetividade e distância.
Como para o velho xerife do filme, o tempo das correrias já passou para o cinema americano; o da violência, certamente não. Mas um dia chegamos lá.
PS.: Recebi simpática mensagem da Eletropaulo, a respeito do meu artigo da semana passada. A iniciativa de esclarecer a respeito dos direitos "e dos deveres" do consumidor, objeto de minhas críticas, não tem origem na empresa; é idéia da Agência Nacional de Energia Elétrica, que exige isso de todas as fornecedoras de energia do país. De modo que é o Estado, velho de guerra, e não as empresas, quem me conclama a ser bom cidadão.


coelhofsp@uol.com.br

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