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MARCELO COELHO
No matadouro americano
Dos índios de cem anos atrás aos mexicanos de hoje, que pedem água, a diferença não é grande
PERDE-SE RAPIDAMENTE a conta dos assassinatos filmados
pelos irmãos Joel e Ethan
Coen em "Onde os Fracos Não Têm
Vez", ganhador do Oscar deste ano.
Mas um crime em especial me chamou a atenção.
Não tem nada a ver com a trama
em si. Aparece apenas numa página
de jornal, e seu relato é lido em voz
alta pelo xerife Tommy Lee Jones a
um auxiliar.
Os proprietários de um lar de velhinhos, conta o xerife, costumavam
matar seus clientes para ficar com o
dinheiro da pensão. Enterravam os
corpos no quintal.
Nada que impressionasse o cansado xerife, a não ser pelo fato de que,
antes de serem mortos, os velhinhos
eram torturados. "Para quê isso?",
pergunta o xerife, que depois especula: "Talvez a televisão do lugar estivesse quebrada."
O crime só foi descoberto, prossegue a reportagem, porque um velho
fugiu. Foi encontrado na rua sem
roupas, usando apenas uma coleira
de cachorro.
Foi só aí que a vizinhança percebeu, continua o xerife. "Ninguém
notou nada de estranho enquanto os
donos do asilo cavavam sepulturas
no terreno..."
A estranheza e a gratuidade do
mal estão presentes o tempo todo
em "Onde os Fracos Não Têm Vez".
Mas a notícia de jornal lida pelo xerife é capaz de despertar outras associações no espectador.
Estamos, sem dúvida, mais próximos de Abu Ghraib, onde prisioneiros iraquianos foram torturados (e
fotografados) por soldados dos Estados Unidos, do que da paisagem da
fronteira entre o México e os Estados Unidos, lindamente descortinada nas primeiras cenas deste filme
policial.
Talvez não seja despropositado
aprofundar um pouco essa associação. Como é freqüente nos filmes
dos irmãos Coen, uma operação desonesta, mas relativamente simples
e segura, logo começa a dar errado.
Pessoas mais ou menos comuns
vêem-se diante da oportunidade de
dar uma boa virada na vida -mas as
coisas são sempre muito mais complicadas do que se pensa quando padrões ordinários de decência são
rompidos.
A idéia da "big mess", da grande
trapalhada, está presente com tanta
intensidade no filme quanto nas notícias sobre a Guerra do Iraque. Parece ser resultado menos de um acidente do que de uma predestinação.
"Onde os Fracos Não Têm Vez"
reúne entre seus personagens pelo
menos três veteranos do Vietnã;
quanto ao xerife, provém de uma
longa linhagem de combatentes no
front da segurança interna. Por sua
vez, dos índios de cem anos atrás aos
mexicanos de hoje, que pedem água
e piedade em espanhol, a diferença
não é grande; acrescentar vietnamitas e iraquianos à lista não seria nada
fora do normal.
Restam, entretanto, os americanos normais, cujas breves aparições
talvez sejam o melhor do filme. Balconistas, granjeiros, gerentes de hotéis, ao mesmo tempo desconfiados
e prontos para ajudar, estão entre as
vítimas preferenciais do psicopata
encarnado por Javier Bardem, inesquecível com seu olhar parado, seus
modos de zumbi e seu equipamento
homicida, próprio ao abate de reses
num matadouro.
Não sei se este é o melhor dos filmes dos irmãos Coen, ou dos que
concorriam ao Oscar. O final me deixa embatucado, e parece que muita
coisa ainda está por acontecer. Talvez esteja mesmo: a história americana nunca cessa de colher, numa
espécie de cortejo de autômatos, vítimas sem conta.
Uma das grandes qualidades de
"Onde os Fracos Não Têm Vez" é
justamente esse "olhar parado", que
os irmãos Coen parecem ter tomado
de empréstimo ao assassino que inventaram no filme.
Embora o efeito de câmeras frenéticas como as de "Cidade de Deus" e
"Tropa de Elite" seja muito bom, é
certamente um sinal de maturidade
estilística dos irmãos Coen a opção
de refletir tanta violência com o máximo de objetividade e distância.
Como para o velho xerife do filme, o
tempo das correrias já passou para o
cinema americano; o da violência,
certamente não. Mas um dia chegamos lá.
PS.: Recebi simpática mensagem
da Eletropaulo, a respeito do meu
artigo da semana passada. A iniciativa de esclarecer a respeito dos direitos "e dos deveres" do consumidor,
objeto de minhas críticas, não tem
origem na empresa; é idéia da Agência Nacional de Energia Elétrica,
que exige isso de todas as fornecedoras de energia do país. De modo que
é o Estado, velho de guerra, e não as
empresas, quem me conclama a ser
bom cidadão.
coelhofsp@uol.com.br
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