São Paulo, sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Assim passa a glória do mundo


Ela não compreende a crise econômica. Acha que é exagero. Como? A boate dela vive cheia


É ALTA , belo espécime do tipo boazuda, cantada em prosa e verso, até mesmo por Vinicius de Morais -e, embora ela pense que ganha dinheiro com a voz e com seus dotes artísticos, o bumbum explica o seu sucesso em Paris, Nova York e no Rio. Quando jovem, era mais negra do que agora, negra azulada, tipo princesa nigeriana, é só imaginar a filha de um rei africano, 20 anos mais moça e bela.
O tipo, mais para o exótico do que para o folclórico, fez furor em Paris nos anos 60 e 70. Era, guardadas as proporções, uma nova Josephine Baker, coxas colossais, menos classuda e mais espalhafatosa, dava para o gasto. Evidente que não faltaram amigos e maridos para a moça.
Com força de vontade, manteve a forma e a voz -sem perder a redonda proeminência do fantástico bumbum. Agora, já entrada na fase madura, os parisienses a esnobaram, os nova-iorquinos a relegaram a boates de terceira classe, e o jeito foi tentar o Brasil, onde, repetindo a bíblica Nazaré, ninguém é profeta em sua terra.
Os anos em que viveu fora do país explicam muita coisa em sua atual postura. Seu repertório de resistência está na base do Ary Barroso, do Dorival Caymmi, do Vicente Paiva -e, quando canta em inglês ou francês, as músicas são da mesma época: Cole Porter, Irving Berlin, Charles Trenet, Ernesto Lecuona. Sua gravação de "Babalu" vendeu horrores.
Pessoalmente, gosto do tipo físico e musical, mas me recuso a ir consumi-la na boate em que se exibe -uma dessas casas que entram em moda sem ninguém entender e que, sem ninguém entender, saem da moda. A moça vem me ver. Impressiona-me a sua altura, os seus olhos molhados e famintos, o seu desembaraço internacional, e, por último, mas não em último lugar, o seu assombroso bumbum.
A urgência de sua fome me inibe: ela quer mais sucesso, exige mais luz em torno de seu nome, acha que é uma injustiçada, o mundo lhe deu tanto, mas ela se queixa, queria mais porque quer tudo. Reclama dos jornais, das revistas e TVs que se tornaram avaras em divulgar a sua beleza e a sua arte.
Explico que há outros assuntos, a moça que se automutilou na Suíça, a entrevista do Jarbas Vasconcelos, a nova cara da Dilma, a sucessão presidencial, o desemprego, a crise, mas a moça acha que é mais importante do que Dilma (pessoalmente, eu concordo com ela, preferia passar um fim de semana a seu lado do que ao lado da candidata a candidata à presidência da República).
Quanto à crise econômica mundial, ela não compreende nada. Acha que é exagero dos governos e dos bancos. Como? A boate dela vive cheia, botando pelo ladrão todas as noites, mais de 300 pessoas, nos fins de semana, feriados e dias santificados mais do que isso, gente consumindo uísque e champanhe, onde está a crise? Outro dia, um cara veio do interior de São Paulo e mandou um recado por intermédio do garçom: US$ 10 mil por uma noite! Dólares, e não míseros reais. Onde está a crise?
Desanimo de explicar que esses US$ 10 mil que lhe foram oferecidos constituem exatamente um dos nossos problemas: a concentração de dinheiro nas mãos de alguns poucos. Mas ela não pensa nisso. Está amando um cara que se diz descendente dos reis de Navarra, tem nome no almanaque "Gota" e já lhe ofereceu um nome ilustre com direito a brasão e lema em latim.
É muito pouco para a minha amiga, ela quer mais do que isso: aceita o brasão, o lema em latim, o dinheiro. Mas não renuncia à plateia que a consome e que ela julga pequena, desproporcional ao seu talento e mérito, bumbum incluído.
Para contentá-la, seria necessário encher o Grand Canyon ou o vale de Josafá, onde dizem que será realizado o juízo final de vivos e mortos, multidões insaciáveis e permanentes que dia e noite gritassem o nome dela, que a consagrassem e, maravilhados, a aplaudissem por toda a eternidade.
Como eu estudei alguns anos de latim, quis saber como era o dístico que enfeita e explica o brasão do tal descendente dos reis de Navarra. Ela me mostra uma carta em papel timbrado do grande reino espanhol. O brasão é vermelho e azul, tem um elmo prateado e uma águia dourada. O dístico é "Sic transit gloria mundi".


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Televisão: Comediante de "Seinfeld" retorna à TV
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.