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FERREIRA GULLAR
O preço da liberdade
O Sesc Ipiranga, ao me convidar para participar de um
ciclo de leituras dramáticas neste
mês, ofereceu-me a oportunidade
de reviver alguns momentos da
história do Grupo Opinião, que,
no campo teatral, em dezembro
de 1964, deu início à luta contra a
ditadura militar. Pude assistir,
antes do debate que se realizaria
em seguida, a um espetáculo-síntese das peças "Opinião" e "Liberdade, Liberdade", o que não só
me comoveu como me levou de
volta àqueles dias difíceis, dos
quais, então, estranhamente, senti saudade!
É que, hoje, aquelas cenas, falas
e canções surgem sobre um fundo
de realidade do qual estão excluídos os temores e ameaças daquele
momento, embora não de todo,
porque, na verdade, estão presentes como passado. Os atores agora
são outros, mas a seus gestos e palavras se misturam os de Nara
Leão, de Zé Kéti e de João do Vale:
subitamente estou em nosso teatrinho da rua Siqueira Campos,
em Copacabana, lotado de um
público fervoroso e solidário.
Mas tampouco me limito a evocar o espetáculo, já que a essa evocação se juntam as lembranças de
como ele nasceu, em meu apartamento em Ipanema. A questão
que nos colocávamos era: como
continuar a luta agora que não
há mais o Centro Popular de Cultura (CPC)?
Nara acabara de lançar um disco intitulado "Opinião", em que
cantava músicas de Zé Kéti e João
do Vale, que ela ouvira no Zicartola. Vianinha teve então a idéia
de fazer um show que reunisse os
três artistas, mesmo porque cada
um deles representava classes diferentes da sociedade brasileira, o
que daria margem a tocar em assuntos como a reforma agrária, a
desigualdade econômica e a liberdade de expressão.
Para que tais problemas não
surgissem como mera provocação
à ditadura, o texto do show se basearia em depoimentos dos três
protagonistas. Havia, no entanto,
um problema para o qual não
víamos solução imediata: se surgíssemos como um novo grupo
teatral, a ditadura logo perceberia que era o CPC com nova cara.
A saída foi, ao convidarmos Augusto Boal para dirigir o espetáculo, propor que o Teatro de Arena de São Paulo assumisse nominalmente a produção do espetáculo. Resolvido esse problema,
restava um último: onde montá-lo? Vianinha se lembrou de um
espaço no shopping center da Siqueira Campos, onde o Arena havia se apresentado em 1959.
Ali, utilizando as cadeiras velhas de um antigo cinema, montamos o nosso precário teatro,
que entraria para a história. O
show "Opinião" estreou, e as casas lotadas com um mês de antecipação impediram que a ditadura o tirasse de cartaz.
Entusiasmados com o êxito do
espetáculo, que juntava música
popular brasileira e texto político,
Millôr Fernandes e Flávio Rangel
tiveram a idéia de criar um espetáculo que se chamaria "Liberdade, Liberdade". A censura do regime, que já estava alerta, tentou
proibir a peça, mas surpreendeu-se ao ver que, para isso, teria de
censurar palavras de Sócrates,
Aristóteles, Voltaire, Shakespeare, Lincoln, Danton, García Lorca
e Castro Alves entre outros... Após
uma semana de hesitação, liberou-a e, em 21 de abril de 1965, ela
estreava com o teatro lotado.
Algumas semanas depois, recebo um telefonema de Pichín Plá,
que, naquela tarde, cumpria seu
turno na bilheteria. Avisa-me que
um sujeito comprara para aquela
noite 40 ingressos, exigindo que
fossem todos juntos. Lembrei-me
de que o vice-governador Rafael
de Almeida Magalhães ia assistir
ao espetáculo exatamente naquele dia a convite de Hélio Fernandes, diretor da "Tribuna da Imprensa" e irmão de Millôr. Decidi
ligar para Hélio, que ligou para
Rafael, que ligou para o chefe de
polícia.
Começado o espetáculo, descobriu-se no banheiro masculino
um objeto estranho: era uma
bomba caseira. Estávamos tensos,
certos de que algo ia ocorrer. De
fato, no momento em que Paulo
Autran monologava em cena,
uma voz gritou: "Comunista!". E
logo outras repetiram: "Comunista! Comunista!". Mas a platéia
reagiu e, batendo palmas, as abafou. Localizamos o ponto de onde
partiram os gritos e avisamos os
policiais, que, findo o espetáculo,
detiveram um grupo de homens
suspeitos e os revistaram: traziam
escondidos sob o paletó cassetetes,
canos de ferro e revólveres. Desarmados, saíram do teatro quando
o público já tinha ido embora e se
depararam com um fotógrafo e
um repórter da "Tribuna". No dia
seguinte, o jornal estamparia na
primeira página a foto do chefe
do bando: um oficial da reserva
da Aeronáutica, em mangas de
camisa. Naquela noite, na Fiorentina, gargalhávamos: "Pusemos a polícia da ditadura contra
a ditadura! Dialética pura!".
Faz 40 anos que tudo isso aconteceu. Naquela noite, ainda pudemos rir, mas, certa madrugada,
estouraram a bilheteria do nosso
teatro com uma bomba. O público, assustado, afastou-se, fomos à
falência. Durante o debate no
Sesc Ipiranga, quando alguém
afirmou que o Brasil não mudou
e que continuamos sob uma ditadura disfarçada, discordei veementemente. É que nós também
dizíamos, antes do golpe de 1964,
que a democracia brasileira era
uma farsa, uma vez que a sociedade continuava injusta. Só depois que a tal da "democracia
burguesa" acabou percebemos o
quanto ela era preciosa. Tivemos
de lutar 20 anos para reconquistá-la e só então podermos, livremente, clamar de novo pela sociedade menos injusta.
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