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BERNARDO CARVALHO
Kaspar Hauser amazônico
Narrativa de "Serras da
Desordem" embaralha
os limites entre a ficção
e o documentário
"SERRAS DA Desordem", de
Andrea Tonacci, fala do
fim do mundo. E não só
por se servir de imagens de arquivo
de explosões da bomba atômica, do
formigueiro humano dos garimpos
brasileiros e de poços de petróleo
queimando em guerras no deserto
do Oriente Médio. O filme narra a
odisséia de Carapiru, índio guajá, do
Maranhão, encontrado em 1988, a
2.000 km de sua aldeia, após passar
dez anos desaparecido. O sentido de
fim do mundo que a história do índio exprime pode parecer insignificante e microscópico se comparado
com as imagens dos noticiários, mas
nem por isso é menos devastador.
Há duas semanas, "Serras da Desordem" ganhou o Prêmio Jairo
Ferreira, criado por críticos de cinema, na categoria melhor filme de
2006. Já havia dividido o prêmio de
melhor filme com "Anjos do Sol", de
Rudi Lagemann, no último Festival
de Gramado. Até agora, "Serras da
Desordem" só foi exibido em sessões especiais. A estréia em circuito
comercial está prevista para o segundo semestre.
O filme é uma reencenação (representa, com personagens reais, fatos que eles próprios viveram anos
antes). Tonacci segue a trilha do iraniano Abbas Kiarostami ("Close-up", 1990) e do chinês Zhang Yuan
("Filhos", 1996). Ao propor a pessoas que passaram por determinados acontecimentos interpretar, como atores, seus próprios papéis,
reencenando no cinema o que viveram na realidade, essas narrativas
embaralham os limites entre documentário e ficção e levantam questões complexas sobre o real e a representação.
O mínimo que se pode dizer da
narrativa de "Serras da Desordem" é
que nela nada é simples. O filme começa como aparente registro etnográfico de um grupo de índios em
deslocamento pela mata.
Durante os 15 minutos iniciais, tudo é dito em tupi-guarani, língua dos
guajás. A câmera registra as ações
cotidianas, e os índios reagem com a
naturalidade profissional (ou a indiferença) de quem não está sendo filmado. Até serem atacados por brancos armados, em uma emboscada da
qual Carapiru consegue sair aparentemente ileso -como se fosse possível escapar ileso a um massacre.
A primeira frase pronunciada em
português é um emblema do horror.
Surge quando a câmera já está dentro de um trem de garimpeiros e policiais armados a serviço de uma mineradora. Alguém diz: "O índio é
uma outra humanidade". Quando o
trem passa por um aviso que proíbe
aos brancos a entrada em terras indígenas, um dos passageiros põe a
mão para fora e faz de conta que atira com o dedo contra a mata. Bangue-bangue.
A história real começa em 1977,
quando um grupo de índios guajás é
massacrado no sertão do Maranhão.
Dez anos depois, um índio é encontrado numa fazenda, na Bahia, e levado a Brasília para ser identificado.
Em português, quando quer se mostrar agradecido, ele consegue dizer
no máximo "é bom" - uma expressão que, na sua inocência e diante
dos fatos, não poderia ser mais irônica. Não está nada bom.
Quando, afinal, descobrem a etnia
do índio, chamam um intérprete de
uma aldeia no Maranhão. E, para
surpresa de todos, o intérprete reconhece em Carapiru o pai de quem
ele havia sido separado à força, na
infância, durante o massacre - o
menino foi criado por fazendeiros
antes de ser resgatado pela Funai e
devolvido a sua aldeia.
O reencontro entre Carapiru e o
filho, em 1988, foi motivo de reportagens na televisão. Quase 20 anos
depois, Tonacci convoca os personagens reais para reencenar seus próprios papéis na história, agora como
atores. E o resultado extraordinário
não é apenas o sentimento nostálgico, uma idealização conservacionista, mas a constatação desiludida do
fim do mundo (do fim de um mundo
solapado por outro) representado
pela figura solitária de um índio desgarrado e sobrevivente, um Kaspar
Hauser amazônico, condenado para
sempre à incomunicabilidade.
Depois de dez anos à deriva, Carapiru já não se reconhece nem mesmo entre os seus, na sua língua. Alguma coisa se perdeu para sempre.
Já não há redenção em reencontrar
o filho. O mundo que está desaparecendo já se encontra em estado de
miséria. A certa altura, um sertanista reflete sobre essa perda: "Quando
você acende um isqueiro, consegue
desvalorizar num instante tudo o
que eles têm". Está falando de como
é fácil tornar inútil tudo o que antes
fazia sentido para uma determinada
sociedade, seu modo de vida, seus
valores e práticas culturais. "Serras
da Desordem" fala da consciência e
da dor dessa perda. Que, obviamente, não se restringe aos índios guajás.
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