São Paulo, terça-feira, 27 de março de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Kaspar Hauser amazônico

Narrativa de "Serras da Desordem" embaralha os limites entre a ficção e o documentário

"SERRAS DA Desordem", de Andrea Tonacci, fala do fim do mundo. E não só por se servir de imagens de arquivo de explosões da bomba atômica, do formigueiro humano dos garimpos brasileiros e de poços de petróleo queimando em guerras no deserto do Oriente Médio. O filme narra a odisséia de Carapiru, índio guajá, do Maranhão, encontrado em 1988, a 2.000 km de sua aldeia, após passar dez anos desaparecido. O sentido de fim do mundo que a história do índio exprime pode parecer insignificante e microscópico se comparado com as imagens dos noticiários, mas nem por isso é menos devastador.
Há duas semanas, "Serras da Desordem" ganhou o Prêmio Jairo Ferreira, criado por críticos de cinema, na categoria melhor filme de 2006. Já havia dividido o prêmio de melhor filme com "Anjos do Sol", de Rudi Lagemann, no último Festival de Gramado. Até agora, "Serras da Desordem" só foi exibido em sessões especiais. A estréia em circuito comercial está prevista para o segundo semestre.
O filme é uma reencenação (representa, com personagens reais, fatos que eles próprios viveram anos antes). Tonacci segue a trilha do iraniano Abbas Kiarostami ("Close-up", 1990) e do chinês Zhang Yuan ("Filhos", 1996). Ao propor a pessoas que passaram por determinados acontecimentos interpretar, como atores, seus próprios papéis, reencenando no cinema o que viveram na realidade, essas narrativas embaralham os limites entre documentário e ficção e levantam questões complexas sobre o real e a representação.
O mínimo que se pode dizer da narrativa de "Serras da Desordem" é que nela nada é simples. O filme começa como aparente registro etnográfico de um grupo de índios em deslocamento pela mata.
Durante os 15 minutos iniciais, tudo é dito em tupi-guarani, língua dos guajás. A câmera registra as ações cotidianas, e os índios reagem com a naturalidade profissional (ou a indiferença) de quem não está sendo filmado. Até serem atacados por brancos armados, em uma emboscada da qual Carapiru consegue sair aparentemente ileso -como se fosse possível escapar ileso a um massacre.
A primeira frase pronunciada em português é um emblema do horror. Surge quando a câmera já está dentro de um trem de garimpeiros e policiais armados a serviço de uma mineradora. Alguém diz: "O índio é uma outra humanidade". Quando o trem passa por um aviso que proíbe aos brancos a entrada em terras indígenas, um dos passageiros põe a mão para fora e faz de conta que atira com o dedo contra a mata. Bangue-bangue.
A história real começa em 1977, quando um grupo de índios guajás é massacrado no sertão do Maranhão. Dez anos depois, um índio é encontrado numa fazenda, na Bahia, e levado a Brasília para ser identificado. Em português, quando quer se mostrar agradecido, ele consegue dizer no máximo "é bom" - uma expressão que, na sua inocência e diante dos fatos, não poderia ser mais irônica. Não está nada bom.
Quando, afinal, descobrem a etnia do índio, chamam um intérprete de uma aldeia no Maranhão. E, para surpresa de todos, o intérprete reconhece em Carapiru o pai de quem ele havia sido separado à força, na infância, durante o massacre - o menino foi criado por fazendeiros antes de ser resgatado pela Funai e devolvido a sua aldeia.
O reencontro entre Carapiru e o filho, em 1988, foi motivo de reportagens na televisão. Quase 20 anos depois, Tonacci convoca os personagens reais para reencenar seus próprios papéis na história, agora como atores. E o resultado extraordinário não é apenas o sentimento nostálgico, uma idealização conservacionista, mas a constatação desiludida do fim do mundo (do fim de um mundo solapado por outro) representado pela figura solitária de um índio desgarrado e sobrevivente, um Kaspar Hauser amazônico, condenado para sempre à incomunicabilidade.
Depois de dez anos à deriva, Carapiru já não se reconhece nem mesmo entre os seus, na sua língua. Alguma coisa se perdeu para sempre. Já não há redenção em reencontrar o filho. O mundo que está desaparecendo já se encontra em estado de miséria. A certa altura, um sertanista reflete sobre essa perda: "Quando você acende um isqueiro, consegue desvalorizar num instante tudo o que eles têm". Está falando de como é fácil tornar inútil tudo o que antes fazia sentido para uma determinada sociedade, seu modo de vida, seus valores e práticas culturais. "Serras da Desordem" fala da consciência e da dor dessa perda. Que, obviamente, não se restringe aos índios guajás.


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