São Paulo, sexta, 27 de março de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
"God bless the Oscars"

GERALD THOMAS
de Nova York

É genial e emocionante o comercial da cerveja Miller Light que foi ao ar durante o Oscar. Feito por um amador com uma VHS caseira e custando -exatamente- US$ 80, ele começa mostrando um placar onde se lê: "Dedicado aos apaixonados pelo cinema". Corta para uma pia cheia de água, dentro da qual flutua uma lata vazia de Miller Light. A câmera segue a trajetória da pobre latinha dentro da pia, até que ela se depara com uns cubículos de gelo boiando na mesma água. Sem nenhum grande drama, a lata esbarra nos cubos de gelo e começa a afundar. A câmera segue a lata até o fundo da pia, onde ela finalmente se acomoda e solta sua última bolha de ar. A trilha musical do comercial é a voz do próprio garoto que o filmou cantarolando, fora do tom, o tema de "Titanic".
Esse filminho de 30 segundos é, antes de mais nada, uma comovente homenagem à arte de recriar o mundo inalcançável por meio de pequenos ingredientes. Sim, ele também pode ser visto como um sarcástico comentário que mistura arte e o comércio dos tempos atuais. Mas antes de tudo isso, o filminho também é a maneira de um cineasta anônimo dizer "I'm king of the world", nem que seja pelos meros 30 segundos que dura o comercial.
Prestar homenagem aos vitoriosos e saber apreciar a festa dos outros é um ato de generosidade e segurança da própria grandeza. Em contraponto, pode-se dizer que reclamar de tudo é um ato pequeno, mesquinho. Se, no passado, era considerado "chique" reclamar, protestar contra uma festa como a do Oscar, hoje essa atitude não passa de simples ranhetice. Falar mal do que é consagrado já trouxe adesão instantânea da "intelligenzia", mas hoje não passa de estupidez e cegueira em relação ao paradoxo que o garoto do comercial da Miller Light conseguiu expressar tão bem.
Conheço umas quatro ou cinco pessoas de profissões e interesses diversos que ainda fazem questão de não assistir ao Oscar. Todos eles, amargos e chatos por natureza, acham que toda e qualquer celebração é, necessariamente, o resultado de uma conspiração. Pra eles, o mundo da vitória se mostra leve demais, raso, fútil talvez, e isso os deixa profundamente irritados. Eles não falam "enjoy", não gostam da competição porque pressentem que sairão perdedores.
Para várias gerações, ficar comovido com a entrega de um troféu era sinônimo de pieguice, viadagem, vergonha. Graças a Deus, esse final de século trouxe de volta a liberdade de empolgação, a liberdade da paixão.
Eu a-d-o-r-o o Oscar e não me envergonho nem um pouco de ter passado a segunda-feira, assim como um bilhão de pessoas, vibrando, chorando e berrando diante da televisão. Assim como o autor do filminho da Miller Light, eu fui me virando pra decifrar o mundo atual e ser parte dele. Mesmo não concordando com algumas escolhas, me rendi ao evento. Afinal, ele não era a meu respeito, e sim uma homenagem para aqueles que haviam sido votados pelos seus colegas como os melhores da sua profissão. Como se pode ver um espetáculo desses sem ficar feliz, emocionado por aqueles que saíram com a estátua na mão? Justiças, injustiças, não importa. O jogo da arte é um jogo sem regras, e é justamente o acaso que o envolve que nos torna cúmplices dele. Justiça? Injustiça? O Oscar é uma festa de artistas que sabem que talento em Hollywood significa unir grandes lucros com a lucidez risonha daquele que finge não entender de finanças. E daí?
Chorei quando Robin Williams subiu ao palco. Williams é, de longe, o melhor e mais virtuoso comediante americano. Quem duvida do talento dele, evidentemente nada entende sobre a arte da interpretação. Atuando "sério" ou em pé diante de um microfone, fazendo do quebra-cabeças universal o mesmo que o cineasta amador fez com o comercial da cerveja, Williams é um grande intérprete de minúsculos detalhes. Sua arte, assim como o capitalismo cinematográfico, chegou à maturidade. E como tudo que amadurece, a arte de Williams se encontra num território tênue entre a comédia e a tragédia, uma virtude sutil, no melhor estilo brechtiano.
Quando anunciaram Matt Damon e seu parceiro, quase perdi o pulso. Os dois são a prova de que Hollywood ainda é possível. Damon e seu companheiro destroem a teoria conspirativa dos chatos que só fazem criticar essa indústria, sem reconhecer que sua abrangência e tolerância são tão imensuráveis, enigmáticas e complexas quanto qualquer outro "business" capitalista desse hilariante final de século.
Nem mesmo os criticadíssimos segundos de silêncio que Jim Cameron pediu (e "encenou" com o elenco mais caro do mundo -na platéia estavam sentados uns bons US$ 3 bilhões, em cachês), conseguiram me irritar. Só Cameron sabe o que passou pra conseguir realizar o seu projeto. Seu berro "I'm king of the world" expressa com humildade (e não com a arrogância descrita pela mídia) o grito de sua vitória final. Não precisamos adorar ou gostar de "Titanic" para deixar que seu grito nos emocione. Cameron afundou um navio, mas seu projeto traz à tona o orgulho da verdadeira identidade do cinema americano: esse é o país da ação, da cultura da ação. Talvez ainda seja uma ação juvenil demais. Talvez a identidade americana seja pura inocência, mas uma coisa é certa: aqui não se luta contra a generosidade ou alegria daqueles que vencem. Pelo contrário, aqui cobre-se qualquer lata com ouro.
God bless the Oscars.
Enjoy.


E-mail: geraldthomas@uol.com.br



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