São Paulo, sexta, 27 de março de 1998

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Cássia Eller ao vivo

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio de Janeiro

A mulher-contraste ataca outra vez. Cássia Eller, 35, volta ao que ela diz saber fazer melhor: lança "Veneno Vivo", segundo disco ao vivo numa carreira de seis álbuns. Seu forte, afirma, é o palco -logo, também discos extraídos dali.
Daí parte o contraste. Emblema de timidez na vida cotidiana, Cássia transforma-se em demônio no palco. Sua gravadora, PolyGram, percebe e tenta transformar em números (o outro ao vivo, de 96, vendeu 126 mil cópias -só perde para "Cássia Eller", de 94, com 156 mil; "Veneno Vivo" já sai com 100 mil cópias encomendadas).
A ascensão numerária (antes, vendera 44 mil exemplares de "Cássia Eller", em 90, e 25 mil de "O Marginal", em 92) acentua o contraste: a tímida vem ficando menos tímida -o que gente de sua gravadora atribui à associação com o multi-homem Waly Salomão, seu "tutor" desde "Veneno Antimonotonia" (97, 100 mil cópias), disco dedicado à obra de Cazuza que origina o novo "ao vivo".
Antes bicho do mato, ela até já se distrai e consente em se descontrair em entrevista. "O máximo que o sucesso mudou em minha carreira é que já passei por três empresários", ri, envergonhada.
Mas não sou pessoa que pretenda alcançar o sucesso. Só quero trabalhar, não fico pensando nesse negócio de carreira", completa.
A faixa-síntese do novo CD parece desmenti-la. Composta por Péricles Cavalcanti, "Eu Queria Ser Cássia Eller" seria sinal de que a "mosca verde" da carreira ascendente já a faz se achar o máximo?
Cássia conta a história devagar, admitindo que a eminência parda é, como parece, Waly. "Péricles foi ao show a convite dele. No começo, não queria ir de jeito nenhum, disse que não está mais no pique de ouvir rock'n'roll."
"Não é verdade, isso é intriga", defende-se Péricles. "Eu sou de uma geração rock'n'roll, fiz a versão de "It's All Over Now, Baby Blue', do Bob Dylan, nos anos 70. Tanto que fui logo na estréia do show, não resisti nada."
Cássia continua: "No fim, Péricles ficou impressionado por eu soltar os bichos no palco e não saber nem falar com gente no camarim. Aí resolveu fazer a música".
Ele dá detalhes: "Achei ela tão maravilhosa que disse no camarim, como um elogio: "Eu queria ser você'. Disse que ia fazer uma música com esse nome, mas não tinha a intenção real de fazer. Waly achou a idéia genial, insistiu para que eu fizesse".
O próprio Péricles diz ter achado estranha a idéia. "Poderia parecer ególatra, mas Waly deu a explicação: "Não, ela é a Cássia Rejane, que queria ser Cássia Eller'."
Eller conclui. "Waly queria colocar no show, mas eu não tinha coragem. Só concordei quando saquei: era eu mesma querendo ser eu, aquela mulher que solta os bichos no palco. No dia-a-dia, não sou assim. Sou retraída, não gosto de tomar atitudes, prefiro que façam por mim. Eu queria ser a Cássia Eller", conclui, olhando para o chão. Mas que a timidez vem cedendo, ela não nega.
Rita, Melodia e Noel
Em "Veneno Vivo", a supremacia de Cazuza cede a um elenco de autores que conta com Rita Lee, Lobão, Renato Russo -"todos muito amigos do Cazuza"- e o espanhol Camarón de la Isla.
Rita Lee depõe sobre a pupila: "Essa menina é danada. A mais completa tradução de um El Niño musical. Tem voz de trovão, mas em vez de raios e tempestades, ela nos oferece um belíssimo sol".
"Soube também que ela é tímida nos bastidores e ousada no palco. Gosto muito dessa sabedoria. Sinto-me honrada por ela estar me cantando. Estou torcendo do lado de cá para que "La Eller' aceite meu convite para o acústico da MTV, que será gravado no começo de junho, no Rio", disse Rita.
Cássia reafirma a identificação com Melodia, de quem canta "Farrapo Humano" (outro provável dedo de Waly -que estava por perto quando Jards Macalé a interpretou, em 72).
"Quero, depois deste disco, lançar um só de músicas inéditas. Liguei para o Melodia outro dia, já pedi uma música para ele. Eu adoro Luiz Melodia, espero que ele faça", sorri, tímida.
Novamente, o outro lado modifica a história. Fala Melodia: "Liguei para Cássia outro dia me oferecendo para escrever uma música para ela. Ela falou que queria, mas é tímida demais, fica na dela. Eu nem sabia que havia regravado "Farrapo Humano'. É talentosíssima, sou fã de Cássia Eller".
Mas o projeto de inéditas pode ser de novo atropelado -depois de Cazuza, os agentes dessa vez são o mesmo Waly e Noel Rosa.
Conversamos sobre fazer um projeto com Noel", diz Cássia. "Eu queria montar uma opereta dele, "A Noiva do Condutor'. Noel fez duas: essa, que Grande Otelo e Marília Pêra já fizeram no passado, e "O Ladrão de Galinhas', incompleta. Uns amigos de Brasília que me mostraram, em 86."
Tal fato significaria a reaproximação de uma natimorta carreira de atriz, que ela descreve no texto promocional do novo CD ("Sabem que já fui atriz? Pois fui, mas morro de vergonha quando confesso isso"). Não durou muito: "só cantando fico à vontade", diz.
A opereta é sonho ainda incerto. "É difícil. Para montar a opereta de Noel, precisaria de elenco, orquestra, banda, tudo. Penso em fazer se for com Waly, acho que já posso me sentir à vontade como atriz", diz, olhando para baixo.
Waly Salomão, responsável no início dos 70 pelo antológico show/disco "Fatal", de Gal Costa, ainda estende as asas sobre Cássia e seus "venenos".
São dele a concepção de capa e a idéia de reproduzir no estojo de CD o quadro "Urutu" (28), de Tarsila do Amaral ("ficou encantado com a serpente protegendo o ovo; se não fosse ele, eu nunca ia ver ligação com "Veneno'").
Tudo aponta para uma hegemonia de Waly Salomão (à procura de nova Gal?), certo? Não é bem assim. Cássia admite que houve uma briga -na estréia do show que agora origina "Veneno Vivo".
"É que eu nunca tinha feito texto, maquiagem, roupa, essas coisas que ele inventou. Antes de começar, fiquei me olhando no espelho e não tive coragem. Não fiz nada do combinado, não falei o texto do diário do Cazuza, não cantei as vinhetas. Ele ficou puto, foi embora sem falar comigo."
A crise foi logo contornada, segundo ela. "Fui ao hotel, expliquei, obriguei ele a ir ao show no outro dia. Aí fiz tudo, cantei "Samba e Amor', do Chico, que eu morria de medo."
A relação parece se encaminhar para um embate entre personalidades fortes. Se Waly dirigia Gal com facilidade, Cássia parece meio porco-espinho.
De todas as vinhetas propostas por ele, só "Clareia Lua", ciranda recolhida por Villa-Lobos, chega ao disco, abrindo "Vida Bandida", de Lobão. O texto do diário de Cazuza e a canção de Chico, entre outras, sumiram. "Mas é que eram partes de músicas que ficaram de fora do CD. Não fazia sentido incluir", despista, falsa tímida.


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora PolyGram.



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