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CARLOS HEITOR CONY
Os mais claros objetos do desejo
Não sei se o mesmo acontece com outros, mas sempre
aconteceu comigo. Quando menos espero, estou imaginando
uma cena fantástica, um anjo do
senhor, uma fada madrinha ou
um gênio da lâmpada, qualquer
coisa assim, aparecer de repente e
me oferecer a realização de três
desejos.
Por que 3, e não 5, 10, 20, ou 50?
Na verdade, nunca imaginei a
oferta graciosa de dez ou 50 desejos. Modestamente, contento-me
com três, apesar de poder mais e
muito na minha fantasia. Até sonhando a tendência é a mediocridade.
Sei que, nas histórias encantatórias, os anjos, as fadas e os gênios da lâmpada só aparecem depois de termos feito algum ato heróico retumbante. Ou virtuoso.
Nunca encontrei uma velhinha
na floresta carregando um feixe
de lenha. Nem um sapo asqueroso
que me pedisse carinho. Daí que
nunca ajudei nenhuma velhinha
em dificuldade, nem afaguei nenhum sapo necessitado de afeto.
Talvez por isso as coisas continuem como sempre foram, as velhas não se transformaram em fadas, nem os sapos em gênios que
me dessem um reino, um palácio,
uma princesa.
O tempo foi passando, mas esse
tipo de devaneio nunca me abandonou. Um duende me aparece e
me oferece a realização de três desejos. Isso nunca mudou. Mudaram os meus três desejos, não sei
se para melhor ou para pior, mas
mudaram. Como nunca se realizaram, deram na mesma.
Já houve tempo em que pedia
para ser dono da Panificação Indiana, uma padaria que havia no
Lins, numa esquina com a rua
que tinha um nome esquisito:
Azamor. Suas vitrines brilhavam
com enormes fiambres dourados,
queijos, chocolates. Num canto
havia a máquina de fazer sorvete,
sorvete artesanal, com gosto de
frutas comuns, abacaxi, goiaba,
caju, manga.
Na parede principal, um grande
painel, feito por algum Michelangelo local, mostrava um índio
musculoso ao lado de uma índia
pudica e nua. Havia palmeiras e
aves silvestres ao fundo. Não sei
por que a simples visão daquela
cena paradisíaca me abria a fome
e aumentava a minha gula.
O segundo maior desejo daquele tempo era ser maquinista da
Central do Brasil, numa daquelas
formidáveis locomotivas feitas na
Inglaterra. Eu me via nelas, dia e
noite, sem feriados nem domingos, dirigindo-as num trilho
imenso, que não acabava, não
chegava a lugar nenhum.
O terceiro desejo, talvez o mais
imperioso, era que minha mãe
morresse todas as manhãs, quando ela me proibia de molhar o
pão com manteiga no café com
leite. Havia um subproduto desse
desejo: tão logo acabasse o pão
encharcado no café com leite, a
mãe ressuscitaria e ficaria perto
de mim, tomando conta de mim,
não deixando que as coisas ruins
acontecessem.
Anos mais tarde, diante do
Fauchon, em Paris, me lembrei
da Panificação Indiana. Por Júpiter! Não tive ganas de ser dono da
imensa loja de especialidades.
Achei tudo banal, aquelas tortas e
cremes, aquelas viandas defumadas e queijos civilizados.
As velhas máquinas a vapor foram aposentadas, vieram as locomotivas a diesel, de uma vulgaridade desoladora, sem cheiro e
sem charme. Quanto ao pão molhado no café com leite, que hoje
continuo preferindo, já não tem o
mesmo gosto. A mãe realmente
está longe, muito longe, e, desde
que fiquei crescidinho, ela não me
proibia de mais nada, aceitava
tudo o que eu fazia -mas as coisas foram perdendo o gosto, hoje
molho meu pão com muita manteiga no café com leite. É assim,
lembrando-me dela, que começo
meus dias de órfão antigo e inconformado. (Nada a ver com a
""madeleine" proustiana.)
O tempo continuou escorrendo
entre meus dedos e diante de minhas retinas. E ontem, acordando
no meio da noite (uma moto passou a mil pela Lagoa, fazendo um
trovão assassino), fui à varanda e
imaginei o anjo, a fada ou o gênio
da lâmpada descendo da montanha em frente e me oferecendo
três desejos. Só três.
Para falar a verdade, eu ando
destreinado. Perdi a forma física
necessária para o sonho. Há muito não penso nessa hipótese maravilhosa. Custou-me formular os
três desejos. Os dois primeiros, inconfessáveis e comuns a todos, genéricos como os medicamentos do
nosso Ministério da Saúde, saíram com facilidade. Tinham mulheres no meio e suntuosas contas
bancárias num paraíso fiscal tão
paradisíaco que nem fiscal tinha.
O terceiro desejo demorou a vir,
mas veio. Passei em revista tudo o
que gostaria de ter tido, mas nada
me pareceu importante e necessário. Pererequei de lá para cá, nas
cavernas da memória e na infinitude do futuro, e de repente me
lembrei da Panificação Indiana,
com suas vitrinas recheadas de
fiambres dourados, seus queijos e
doces, seus sorvetes artesanais,
com gosto de manga, abacaxi e
caju -frutas fortes, de instantânea sensualidade.
Revi o imenso índio pintado na
parede do fundo, a carne nua da
índia pudica e bela e me lembrei
do nome daquela rua estranha:
Azamor.
Azar e amor. Só então descobri
que aquele nome era uma mistura de azar e amor. Azamor não
era nome de rua, era o nome de
um destino. Foi um roteiro de vida que eu não compreendi. E,
agora que compreendo, é tarde
demais.
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