São Paulo, sexta-feira, 27 de abril de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Os mais claros objetos do desejo

Não sei se o mesmo acontece com outros, mas sempre aconteceu comigo. Quando menos espero, estou imaginando uma cena fantástica, um anjo do senhor, uma fada madrinha ou um gênio da lâmpada, qualquer coisa assim, aparecer de repente e me oferecer a realização de três desejos.
Por que 3, e não 5, 10, 20, ou 50? Na verdade, nunca imaginei a oferta graciosa de dez ou 50 desejos. Modestamente, contento-me com três, apesar de poder mais e muito na minha fantasia. Até sonhando a tendência é a mediocridade.
Sei que, nas histórias encantatórias, os anjos, as fadas e os gênios da lâmpada só aparecem depois de termos feito algum ato heróico retumbante. Ou virtuoso. Nunca encontrei uma velhinha na floresta carregando um feixe de lenha. Nem um sapo asqueroso que me pedisse carinho. Daí que nunca ajudei nenhuma velhinha em dificuldade, nem afaguei nenhum sapo necessitado de afeto. Talvez por isso as coisas continuem como sempre foram, as velhas não se transformaram em fadas, nem os sapos em gênios que me dessem um reino, um palácio, uma princesa.
O tempo foi passando, mas esse tipo de devaneio nunca me abandonou. Um duende me aparece e me oferece a realização de três desejos. Isso nunca mudou. Mudaram os meus três desejos, não sei se para melhor ou para pior, mas mudaram. Como nunca se realizaram, deram na mesma.
Já houve tempo em que pedia para ser dono da Panificação Indiana, uma padaria que havia no Lins, numa esquina com a rua que tinha um nome esquisito: Azamor. Suas vitrines brilhavam com enormes fiambres dourados, queijos, chocolates. Num canto havia a máquina de fazer sorvete, sorvete artesanal, com gosto de frutas comuns, abacaxi, goiaba, caju, manga.
Na parede principal, um grande painel, feito por algum Michelangelo local, mostrava um índio musculoso ao lado de uma índia pudica e nua. Havia palmeiras e aves silvestres ao fundo. Não sei por que a simples visão daquela cena paradisíaca me abria a fome e aumentava a minha gula.
O segundo maior desejo daquele tempo era ser maquinista da Central do Brasil, numa daquelas formidáveis locomotivas feitas na Inglaterra. Eu me via nelas, dia e noite, sem feriados nem domingos, dirigindo-as num trilho imenso, que não acabava, não chegava a lugar nenhum.
O terceiro desejo, talvez o mais imperioso, era que minha mãe morresse todas as manhãs, quando ela me proibia de molhar o pão com manteiga no café com leite. Havia um subproduto desse desejo: tão logo acabasse o pão encharcado no café com leite, a mãe ressuscitaria e ficaria perto de mim, tomando conta de mim, não deixando que as coisas ruins acontecessem.
Anos mais tarde, diante do Fauchon, em Paris, me lembrei da Panificação Indiana. Por Júpiter! Não tive ganas de ser dono da imensa loja de especialidades. Achei tudo banal, aquelas tortas e cremes, aquelas viandas defumadas e queijos civilizados.
As velhas máquinas a vapor foram aposentadas, vieram as locomotivas a diesel, de uma vulgaridade desoladora, sem cheiro e sem charme. Quanto ao pão molhado no café com leite, que hoje continuo preferindo, já não tem o mesmo gosto. A mãe realmente está longe, muito longe, e, desde que fiquei crescidinho, ela não me proibia de mais nada, aceitava tudo o que eu fazia -mas as coisas foram perdendo o gosto, hoje molho meu pão com muita manteiga no café com leite. É assim, lembrando-me dela, que começo meus dias de órfão antigo e inconformado. (Nada a ver com a ""madeleine" proustiana.)
O tempo continuou escorrendo entre meus dedos e diante de minhas retinas. E ontem, acordando no meio da noite (uma moto passou a mil pela Lagoa, fazendo um trovão assassino), fui à varanda e imaginei o anjo, a fada ou o gênio da lâmpada descendo da montanha em frente e me oferecendo três desejos. Só três.
Para falar a verdade, eu ando destreinado. Perdi a forma física necessária para o sonho. Há muito não penso nessa hipótese maravilhosa. Custou-me formular os três desejos. Os dois primeiros, inconfessáveis e comuns a todos, genéricos como os medicamentos do nosso Ministério da Saúde, saíram com facilidade. Tinham mulheres no meio e suntuosas contas bancárias num paraíso fiscal tão paradisíaco que nem fiscal tinha.
O terceiro desejo demorou a vir, mas veio. Passei em revista tudo o que gostaria de ter tido, mas nada me pareceu importante e necessário. Pererequei de lá para cá, nas cavernas da memória e na infinitude do futuro, e de repente me lembrei da Panificação Indiana, com suas vitrinas recheadas de fiambres dourados, seus queijos e doces, seus sorvetes artesanais, com gosto de manga, abacaxi e caju -frutas fortes, de instantânea sensualidade.
Revi o imenso índio pintado na parede do fundo, a carne nua da índia pudica e bela e me lembrei do nome daquela rua estranha: Azamor.
Azar e amor. Só então descobri que aquele nome era uma mistura de azar e amor. Azamor não era nome de rua, era o nome de um destino. Foi um roteiro de vida que eu não compreendi. E, agora que compreendo, é tarde demais.



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