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WALTER SALLES
"The Clinic", virgens desaparecidas e o novo humor chileno
Paso Tromen, fronteira
entre a Patagônia argentina
e o Chile. No posto policial do lado chileno, algo insólito chama a
atenção. Três cartazes pregados
na parede, atrás do homem fardado que controla os passaportes
com olhar dubitativo. Os dois primeiros são comuns a todas as
áreas de fronteira e mostram fotos de crianças e adultos desaparecidos. O terceiro é extraordinário. Avisa: "Procuram-se virgens
desaparecidas". Logo vêm as fotos
3 x 4 e entendemos de que se trata: as virgens foram roubadas em
igrejas ou em santuários à beira
das estradas.
Não há virgens desaparecidas
em "The Clinic", mas bem que
poderia haver. "The Clinic" é um
ótimo jornal quinzenal de humor,
que pode ser encontrado em qualquer banca do Chile. O título promete: é uma homenagem a The
London Clinic, o hospital no qual
o tristemente célebre general Pinochet se refugiou quando foi
processado na Inglaterra.
Algumas manchetes publicadas
no "The Clinic": "Terremoto no
Afeganistão deixa uma dezena de
vivos. Nove seriam irmãos de
Osama bin Laden". "O bem contra o mail", com foto do papa curvado sobre um computador. "Aumentam os gastos fecais", sobre o
plano do ministro da Economia
de aumentar os gastos fiscais no
Chile.
"The Clinic" avisa que dois insuportáveis comentaristas foram
enviados pela TV chilena para cobrir o conflito em Israel. "Esses caras nos chateiam e nos enrolam
há 30 anos. Arafat e Sharon poderiam finalmente fazer algo de útil
e deixarem os seus francos-atiradores errarem um par de tiros. No
meio de tamanho tiroteio, é pouco pedir."
Você já entendeu. "The Clinic"
não faz nenhuma questão de ser
politicamente correto. Outro
exemplo, desta vez comentando
um suposto projeto do primeiro-ministro Berlusconi de construir
um muro entre a Itália e a Albânia para coibir a imigração ilegal:
"Muro da defesa terá um lado de
mármore e outro de barro".
Alguns temas voltam à medida
que se viram as páginas. Uma
morena com os seios extraordinariamente avantajados garante:
"Não estou nem aí com o gasto
fiscal". Abaixo, um texto sobre a
centenária rainha da Inglaterra,
que partiu desta para melhor:
"Morreu a rainha-mãe. Depois de
101 anos empinando o queixo, a
bonachona senhora é a prova de
que o gim em altas doses faz um
bem danado para a saúde".
Algumas colunas reaparecem a
cada edição. "Os cem personagens menos influentes do Chile" é
uma delas. O felizardo da vez é o
numero 37. Chama-se Pedro Millas, é "vaqueiro, mas prefere ser
chamado de caubói". Há também
o correio sentimental do colunista
Titan do Nascimento, com conselhos sexuais totalmente impublicáveis.
Mas nem só de sarcasmo vive
"The Clinic". Há textos sérios e
agudos em meio às paginas de
humor. Um escritor judaico, Israel Shamir, aponta suas baterias
contra a política expansionista de
Ariel Sharon em um artigo incisivo. Há também uma "História
Nacional da Infâmia", mostrando o quanto o processo de "pacificação" dos índios mapuches, a
mais importante nação indígena
do Chile, foi violento.
Atravessando o Chile, tive a
oportunidade de entrar em uma
aldeia mapuche, perto de uma cidade chamada Carahue. Pois
bem: havia lido sobre os mapuches em livros sobre populações
indígenas na América Latina. Para minha surpresa, o texto do
"The Clinic" e uma entrevista publicada no mesmo jornal com o líder de outra nação indígena, os
araucanos, foram essenciais para
entender onde estávamos pisando.
Humor é coisa séria, já nos ensinou o mestre Millôr. Com toda a
razão. Aos poucos, fomos percebendo como a leitura de "The Clinic" era uma ótima ferramenta
para entender o Chile contemporâneo. Assim como o Casseta e
Planeta nos ajuda a entender
uma parte significativa do que
ocorre no Brasil.
O humor também pode ser um
instrumento de antecipação da
realidade. O "Canard Enchaîné",
jornal diário de humor francês,
era quem vinha se pronunciando
mais veementemente, há tempos,
contra a escalada da extrema-direita e do racismo naquele país.
Estava certíssimo, e deu infelizmente no que deu. Pena que a ida
de Le Pen para o segundo turno
na França não tenha graça nenhuma.
P.S.: Um amigo me envia a seguinte piada no fechamento desta
coluna: você sabia que o pai do Le
Pen morreu em um campo de
concentração? Caiu de uma daquelas torres de observação...
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