São Paulo, sábado, 27 de abril de 2002

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WALTER SALLES

"The Clinic", virgens desaparecidas e o novo humor chileno

Paso Tromen, fronteira entre a Patagônia argentina e o Chile. No posto policial do lado chileno, algo insólito chama a atenção. Três cartazes pregados na parede, atrás do homem fardado que controla os passaportes com olhar dubitativo. Os dois primeiros são comuns a todas as áreas de fronteira e mostram fotos de crianças e adultos desaparecidos. O terceiro é extraordinário. Avisa: "Procuram-se virgens desaparecidas". Logo vêm as fotos 3 x 4 e entendemos de que se trata: as virgens foram roubadas em igrejas ou em santuários à beira das estradas.
Não há virgens desaparecidas em "The Clinic", mas bem que poderia haver. "The Clinic" é um ótimo jornal quinzenal de humor, que pode ser encontrado em qualquer banca do Chile. O título promete: é uma homenagem a The London Clinic, o hospital no qual o tristemente célebre general Pinochet se refugiou quando foi processado na Inglaterra.
Algumas manchetes publicadas no "The Clinic": "Terremoto no Afeganistão deixa uma dezena de vivos. Nove seriam irmãos de Osama bin Laden". "O bem contra o mail", com foto do papa curvado sobre um computador. "Aumentam os gastos fecais", sobre o plano do ministro da Economia de aumentar os gastos fiscais no Chile.
"The Clinic" avisa que dois insuportáveis comentaristas foram enviados pela TV chilena para cobrir o conflito em Israel. "Esses caras nos chateiam e nos enrolam há 30 anos. Arafat e Sharon poderiam finalmente fazer algo de útil e deixarem os seus francos-atiradores errarem um par de tiros. No meio de tamanho tiroteio, é pouco pedir."
Você já entendeu. "The Clinic" não faz nenhuma questão de ser politicamente correto. Outro exemplo, desta vez comentando um suposto projeto do primeiro-ministro Berlusconi de construir um muro entre a Itália e a Albânia para coibir a imigração ilegal: "Muro da defesa terá um lado de mármore e outro de barro".
Alguns temas voltam à medida que se viram as páginas. Uma morena com os seios extraordinariamente avantajados garante: "Não estou nem aí com o gasto fiscal". Abaixo, um texto sobre a centenária rainha da Inglaterra, que partiu desta para melhor: "Morreu a rainha-mãe. Depois de 101 anos empinando o queixo, a bonachona senhora é a prova de que o gim em altas doses faz um bem danado para a saúde".
Algumas colunas reaparecem a cada edição. "Os cem personagens menos influentes do Chile" é uma delas. O felizardo da vez é o numero 37. Chama-se Pedro Millas, é "vaqueiro, mas prefere ser chamado de caubói". Há também o correio sentimental do colunista Titan do Nascimento, com conselhos sexuais totalmente impublicáveis.
Mas nem só de sarcasmo vive "The Clinic". Há textos sérios e agudos em meio às paginas de humor. Um escritor judaico, Israel Shamir, aponta suas baterias contra a política expansionista de Ariel Sharon em um artigo incisivo. Há também uma "História Nacional da Infâmia", mostrando o quanto o processo de "pacificação" dos índios mapuches, a mais importante nação indígena do Chile, foi violento.
Atravessando o Chile, tive a oportunidade de entrar em uma aldeia mapuche, perto de uma cidade chamada Carahue. Pois bem: havia lido sobre os mapuches em livros sobre populações indígenas na América Latina. Para minha surpresa, o texto do "The Clinic" e uma entrevista publicada no mesmo jornal com o líder de outra nação indígena, os araucanos, foram essenciais para entender onde estávamos pisando.
Humor é coisa séria, já nos ensinou o mestre Millôr. Com toda a razão. Aos poucos, fomos percebendo como a leitura de "The Clinic" era uma ótima ferramenta para entender o Chile contemporâneo. Assim como o Casseta e Planeta nos ajuda a entender uma parte significativa do que ocorre no Brasil.
O humor também pode ser um instrumento de antecipação da realidade. O "Canard Enchaîné", jornal diário de humor francês, era quem vinha se pronunciando mais veementemente, há tempos, contra a escalada da extrema-direita e do racismo naquele país. Estava certíssimo, e deu infelizmente no que deu. Pena que a ida de Le Pen para o segundo turno na França não tenha graça nenhuma.
P.S.: Um amigo me envia a seguinte piada no fechamento desta coluna: você sabia que o pai do Le Pen morreu em um campo de concentração? Caiu de uma daquelas torres de observação...



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