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CARLOS HEITOR CONY
A justiça será feita
Mas o que apareceu, senhor juiz, foi a vítima! A vítima está viva, não foi assassinada...
REPÓRTER - MERITÍSSIMO, é
verdade que apareceram novas provas sobre o processo?
Provas irrefutáveis, de arrasar quarteirão?
Juiz - O processo está encerrado.
O réu e seus doutos advogados tiveram todos os prazos legais para
juntar aos autos. O prazo extinguiu-se ao meio-dia de hoje. Nada
mais poderá ser juntado.
Repórter - Mas não se trata de
juntar, Excelência. Segundo os advogados de defesa, apareceu...
Juiz - Depois de encerrado o
prazo, nada mais pode aparecer. A
defesa teve tempo de sobra... Tempo legal...
Repórter - Mas o que apareceu,
senhor juiz, foi a vítima! A vítima
está viva, logo não morreu, não foi
assassinada...
Juiz - É você que está dizendo.
Nos autos, a vítima foi assassinada,
temos os laudos do Instituto Médico Legal, os legistas são idôneos,
tudo correu dentro dos prazos estabelecidos pela lei...
Repórter - Mas a vítima está viva, chegou ontem de Itaperuna, está hospedada na casa de um cunhado, em Del Castilho, vai aparecer
hoje à noite no "Programa do Ratinho"...
Juiz - A Justiça, em sua soberania, não pode tomar conhecimento
do que ocorre fora dos autos. Nas
folhas 69 e verso temos o cristalino
atestado de óbito da vítima, com a
assinatura dos legistas e o reconhecimento, em tabelião público, das
respectivas firmas. Além dessa
prova insofismável, temos o laudo
da perícia realizada pelas autoridades da 45ª Delegacia de Polícia, que
vistoriou e periciou o local do crime. Temos ainda três depoimentos
de pessoas legalmente qualificadas
que assistiram ao crime e depuseram em cartório. Para complementar tantos indícios, para robustecer
tamanhas provas, temos a própria
confissão do réu, que às folhas 87 e
seguintes confessou não apenas o
crime mas suas motivações e a sua
mecânica. Finalmente, temos o parecer do promotor da comarca que
não padeceu de nenhuma dúvida
para pronunciar o réu.
Repórter - Está bem, concordo
com o meritíssimo, tudo está contra o suspeito...
Juiz - Suspeito não! Réu! Já foi
pronunciado como incurso no Código Penal.
Repórter - Continuo de acordo
com o meritíssimo. Mas a verdade
é que a vítima desse assassinato
apareceu, está viva, gozando de boa
saúde, ganhou até uns trocados numa raspadinha na semana passada.
Veio para o Rio, está hospedada em
Del Castilho, ali perto do shopping...
Juiz - Estamos perdendo tempo.
Não me nego a colaborar com a imprensa. Atendo a todos os jornalistas com o maior dos apreços, mas
não posso orientar minha faculdade de julgar pelo que a imprensa
publica. Para mim, como para
qualquer outro juiz consciente de
seus deveres, somente os autos
contém a "res judicanti", os advogados de defesa esgotaram todos os
prazos processuais, apresentaram
todas as testemunhas, ouviram o
Curador de Resíduos, pediram precatórias, deram entrada em "habeas corpus", usaram de todos os
recursos que a lei faculta. Agora, o
próximo passo da Justiça é o julgamento, que está marcado para a
próxima semana.
Repórter - E se a vítima aparecer no tribunal, trazida pela defesa,
e provar que está viva, que não foi
assassinada, ganhou até na raspadinha?
Juiz - Só poderão apresentar-se
ao tribunal as testemunhas arroladas pela promotoria ou pela defesa.
É preciso que estejam qualificadas,
caso contrário não poderão depor.
Repórter - Digamos que a testemunha, que na realidade é a vítima
e a causa de todos os processos e a
razão do julgamento, embora nada
falando, seja apenas mostrada pela
Defesa, como são mostradas, às vezes, a arma do crime, os lençóis ensangüentados, as cordas do enforcamento...
Juiz - O tribunal só se aterá às
provas dos autos. Neles não constam nenhum lençol ensangüentado, nenhuma corda de enforcado.
Aliás, para sua informação, esclareço que a vítima foi afogada num
tanque, houve testemunhas e o
laudo de necropsia é definitivo. Como já disse, houve até mesmo a
confissão do réu, obtida sem nenhuma coação ou violência por
parte da autoridade policial responsável pelo inquérito.
Repórter - Quer dizer, meritíssimo, que nada poderá ser feito?
Juiz - A justiça, meu filho, a justiça será feita!
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