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São Paulo, terça-feira, 27 de maio de 2003

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BERNARDO CARVALHO

O colaborador invisível

O duplo tem um papel central na obra de Robert Louis Stevenson (1850-94). E não apenas em "O Médico e o Monstro", em que isso é evidente. Em "Markheim", por exemplo, recém-publicado pela Dantes editora numa pequena coletânea de três contos centrados na figura do outro e da sombra, o tema do célebre romance é anunciado numa alegoria em que o duplo se manifesta como a consciência da culpa de um assassino.
Segundo a viúva de Stevenson, havia no quarto de infância do escritor, em Edimburgo, uma estante e uma cômoda fabricadas pelo famoso William Brodie, que acabou enforcado, quando descobriram que o respeitável artesão passava as noites roubando casas. "Alguns anos mais tarde, meu marido ficou muito impressionado com a leitura de um artigo sobre o subconsciente publicado numa revista científica francesa. Esse artigo, combinado com suas lembranças do diácono Brodie, esteve na origem da idéia que ele desenvolveu posteriormente, primeiro numa peça e depois no conto "Markheim", e que afinal culminou, após uma febre alta decorrente de uma hemorragia pulmonar, no pesadelo de Jekyll e Hyde."
Stevenson teve a idéia de "O Médico e o Monstro" num sonho. "Os gritos de horror do meu marido durante o sono me levaram a acordá-lo, para a sua grande indignação. "Eu estava justamente sonhando com um magnífico conto de terror", ele me reprovou e me fez um rápido relato de Jekyll e Hyde até a cena da transformação, que ele sonhava quando o interrompi."
Stevenson escreveu a primeira versão em três dias. Depois da recepção negativa da mulher, que o criticou por não ter conseguido exprimir a dimensão alegórica da história, o escritor teve um ataque de raiva, jogou tudo no fogo e terminou uma nova versão (definitiva) em mais três dias.
Num ensaio muito admirado por Borges, o autor de "O Médico e o Monstro" desenvolve a idéia de que quem escreve é um outro. "São elas (essas pequenas criaturas) que fazem a metade do meu trabalho por mim, enquanto eu durmo, e que, segundo toda probabilidade, também fazem o resto, quando estou bem acordado, e que eu, como um tolo, creio estar fazendo eu mesmo. (...) De modo que no final das contas o conjunto das minhas ficções publicadas deve ser o produto exclusivo de algum duende, de algum demônio familiar, de algum colaborador invisível que mantenho trancado numa despensa."
O que se depreende da correspondência e dos ensaios de Stevenson é que não é só a criação literária que depende de uma duplicação, mas a própria consciência humana: "Há muito tempo que eu tentava escrever uma história sobre esse tema, encontrar um corpo, um veículo para esse sentimento poderoso da dualidade humana que de vez em quando acomete o espírito de toda criatura pensante". É o que reiteram também os outros dois textos da pequena coletânea "O Outro - Três Contos de Sombra" (ed. Dantes), assinados por Jack London e Hans Christian Andersen.
O protagonista do conto de Stevenson mata um homem e a partir desse instante passa a ter consciência de "uma presença", embora esteja sozinho, "alguém" que o observa e segue como a sua sombra. No conto de Andersen, o protagonista, de tanta curiosidade por uma moça que mora na casa em frente, projeta a própria sombra na sacada da vizinha como uma forma imaginária de entrar no quarto dela. A sombra ganha vida, tal é o desejo e a curiosidade do seu senhor, e o abandona. Quando reaparece, é para propor ao protagonista uma troca de papéis. Andersen associa a sombra ao desejo e à imaginação; sem eles, o homem é reduzido à sombra da sombra.
Em ambos os contos, o duplo é a imagem, a representação sem a qual ao homem não é permitido ver-se -ou existir. Mas é na narrativa de Jack London que a alegoria vai surgir com mais veemência e clareza. O duplo é uma figura criada pelo homem para refletir sobre si mesmo.
Em "A Sombra e o Brilho", os dois protagonistas, inseparáveis e condenados a uma rivalidade patológica e caricatural desde a infância, querem se livrar um do outro, da visão do outro, querem deixar de ser vistos (talvez na ilusão de por fim conquistar a liberdade) e competem até a morte pela descoberta da fórmula da invisibilidade.
A consciência, porém, depende do outro. Para se ver é preciso haver o outro, que serve de espelho; ninguém se vê sozinho. É o outro que nos dá a medida do que somos, é nele que nos reconhecemos, nem que seja por oposição. O conto de London é tão mais brilhante por associar a invisibilidade de si ao desaparecimento do outro. Porque, curiosamente, livrar-se do outro é também perder a consciência de si.
No caminho para se tornar invisível, um dos protagonistas depara com um obstáculo significativo: mesmo depois de já ter desaparecido sob o efeito de uma "tinta da invisibilidade", sua sombra continua a denunciá-lo. Só se tornará realmente invisível aquele que se livrar da sua sombra, do seu duplo. O paradoxo é que a consciência, sendo o reflexo do outro, só pode existir fora de si. Ao contrário da tradição romântica que considera o encontro com o duplo o anúncio da própria morte, aqui eliminar o duplo, se não fosse impossível, seria uma espécie de suicídio.


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