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BERNARDO CARVALHO
O colaborador invisível
O duplo tem um papel central na obra de Robert Louis
Stevenson (1850-94). E não apenas em "O Médico e o Monstro",
em que isso é evidente. Em "Markheim", por exemplo, recém-publicado pela Dantes editora numa pequena coletânea de três
contos centrados na figura do outro e da sombra, o tema do célebre
romance é anunciado numa alegoria em que o duplo se manifesta
como a consciência da culpa de
um assassino.
Segundo a viúva de Stevenson,
havia no quarto de infância do
escritor, em Edimburgo, uma estante e uma cômoda fabricadas
pelo famoso William Brodie, que
acabou enforcado, quando descobriram que o respeitável artesão
passava as noites roubando casas.
"Alguns anos mais tarde, meu
marido ficou muito impressionado com a leitura de um artigo sobre o subconsciente publicado numa revista científica francesa. Esse artigo, combinado com suas
lembranças do diácono Brodie,
esteve na origem da idéia que ele
desenvolveu posteriormente, primeiro numa peça e depois no conto "Markheim", e que afinal culminou, após uma febre alta decorrente de uma hemorragia pulmonar, no pesadelo de Jekyll e
Hyde."
Stevenson teve a idéia de "O
Médico e o Monstro" num sonho.
"Os gritos de horror do meu marido durante o sono me levaram a
acordá-lo, para a sua grande indignação. "Eu estava justamente
sonhando com um magnífico
conto de terror", ele me reprovou e
me fez um rápido relato de Jekyll
e Hyde até a cena da transformação, que ele sonhava quando o interrompi."
Stevenson escreveu a primeira
versão em três dias. Depois da recepção negativa da mulher, que o
criticou por não ter conseguido
exprimir a dimensão alegórica da
história, o escritor teve um ataque
de raiva, jogou tudo no fogo e terminou uma nova versão (definitiva) em mais três dias.
Num ensaio muito admirado
por Borges, o autor de "O Médico
e o Monstro" desenvolve a idéia
de que quem escreve é um outro.
"São elas (essas pequenas criaturas) que fazem a metade do meu
trabalho por mim, enquanto eu
durmo, e que, segundo toda probabilidade, também fazem o resto, quando estou bem acordado, e
que eu, como um tolo, creio estar
fazendo eu mesmo. (...) De modo
que no final das contas o conjunto das minhas ficções publicadas
deve ser o produto exclusivo de algum duende, de algum demônio
familiar, de algum colaborador
invisível que mantenho trancado
numa despensa."
O que se depreende da correspondência e dos ensaios de Stevenson é que não é só a criação literária que depende de uma duplicação, mas a própria consciência humana: "Há muito tempo
que eu tentava escrever uma história sobre esse tema, encontrar
um corpo, um veículo para esse
sentimento poderoso da dualidade humana que de vez em quando acomete o espírito de toda
criatura pensante". É o que reiteram também os outros dois textos
da pequena coletânea "O Outro -
Três Contos de Sombra" (ed.
Dantes), assinados por Jack London e Hans Christian Andersen.
O protagonista do conto de Stevenson mata um homem e a partir desse instante passa a ter consciência de "uma presença", embora esteja sozinho, "alguém"
que o observa e segue como a sua
sombra. No conto de Andersen, o
protagonista, de tanta curiosidade por uma moça que mora na
casa em frente, projeta a própria
sombra na sacada da vizinha como uma forma imaginária de entrar no quarto dela. A sombra ganha vida, tal é o desejo e a curiosidade do seu senhor, e o abandona. Quando reaparece, é para
propor ao protagonista uma troca de papéis. Andersen associa a
sombra ao desejo e à imaginação;
sem eles, o homem é reduzido à
sombra da sombra.
Em ambos os contos, o duplo é a
imagem, a representação sem a
qual ao homem não é permitido
ver-se -ou existir. Mas é na narrativa de Jack London que a alegoria vai surgir com mais veemência e clareza. O duplo é uma
figura criada pelo homem para
refletir sobre si mesmo.
Em "A Sombra e o Brilho", os
dois protagonistas, inseparáveis e
condenados a uma rivalidade patológica e caricatural desde a infância, querem se livrar um do
outro, da visão do outro, querem
deixar de ser vistos (talvez na ilusão de por fim conquistar a liberdade) e competem até a morte pela descoberta da fórmula da invisibilidade.
A consciência, porém, depende
do outro. Para se ver é preciso haver o outro, que serve de espelho;
ninguém se vê sozinho. É o outro
que nos dá a medida do que somos, é nele que nos reconhecemos, nem que seja por oposição. O
conto de London é tão mais brilhante por associar a invisibilidade de si ao desaparecimento do
outro. Porque, curiosamente, livrar-se do outro é também perder
a consciência de si.
No caminho para se tornar invisível, um dos protagonistas depara com um obstáculo significativo: mesmo depois de já ter desaparecido sob o efeito de uma "tinta da invisibilidade", sua sombra
continua a denunciá-lo. Só se tornará realmente invisível aquele
que se livrar da sua sombra, do
seu duplo. O paradoxo é que a
consciência, sendo o reflexo do
outro, só pode existir fora de si.
Ao contrário da tradição romântica que considera o encontro
com o duplo o anúncio da própria
morte, aqui eliminar o duplo, se
não fosse impossível, seria uma
espécie de suicídio.
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