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CRÍTICA
Amontoado de "contra-clichês"
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
A primeira metade é bacana: lindas cenas de destruição, Nova York inundada, furacões gigantes em Los Angeles,
granizo digno de Godzilla caindo
dos céus de Tóquio. Inaugura-se
uma nova Era do Gelo, capaz de
fazer o Empire State virar sorvete
em menos de um minuto.
A outra metade é a chatice de
sempre. Pai culpado procura resgatar o filho contra ventos e marés. Mocinho e mocinha se apaixonam e sofrem moderados riscos de afogamento, septicemia,
inanição e trucidamento por animais selvagens. Cientista abnegado, à beira de catástrofe climática,
tenta convencer o governo de que
é preciso fazer alguma coisa. E há
aquela tradicional meia dúzia de
coadjuvantes desengonçados e
leais, a ser exterminada no seu devido tempo.
"O Dia Depois de Amanhã" é
um amontoado de clichês. Mas é
também um amontoado de "contra-clichês" -e isso o torna mais
interessante. Não sem humor, o
filme de Roland Emmerich ("Independence Day") se dá ao luxo
de contrariar em filigrana as obviedades que afirma no atacado.
A bandeira dos EUA tremula
em triunfo numa das primeiras
cenas. Mais tarde, porém, um
vento polar haverá de imobilizá-la
espetacularmente, sob uma camada instantânea de gelo.
Antes da tempestade, vemos
uma imagem bem "incorreta" do
ponto de vista político: numa estação meteorológica, o funcionário negro cochila tranqüilamente
em suas horas de plantão. Surpresa: ele acorda, é o primeiro a dar o
alarme e não tem nenhum sotaque do Alabama -trata-se de um
disciplinado cidadão britânico.
A própria catástrofe nasce de
uma inversão de expectativas. A
nova Era do Gelo foi provocada
pelo aquecimento global. É que
com o derretimento das calotas
polares as correntes marítimas se
desorganizam, e esse fator, por
sua vez -bem, o cientista americano (Dennis Quaid, com a expressão do rosto congelada num
constante alarme) encarrega-se
de explicar tudo direitinho.
O cientista está numa reunião
da ONU: os representantes do
mundo árabe, razoáveis e esclarecidos, entendem o problema na
hora. O vice-presidente americano, radical de direita, não quer saber de nada. Num filme produzido pela Fox (com direito a merchandising do próprio canal de
notícias, famoso pelo conservadorismo), não deixa de ser uma
ironia interessante. Outras virão:
em meio ao pânico climático, um
mendigo nova-iorquino e até os
povos latino-americanos irão
mostrar certo valor paradoxal.
O casalzinho romântico (Jake
Gyllenhaal e Emmy Rossum) derrete-se com excessiva lentidão e
tem tanto charme quanto um picolé de chuchu. Ganha um, em todo caso, quem descobrir por que a
Biblioteca de Nova York é o melhor lugar de abrigo para a dupla.
Um cientista inglês (o resignado
Ian Holm) se associa aos americanos. O continente europeu, num
ato de presumível ressentimento
geopolítico, é ignorado no filme.
Com belas cenas de terrorismo
ecológico, a nova Guerra Fria
imaginada por Emmerich não
aponta inimigos claros para os Estados Unidos. Exceto, talvez, o
próprio planeta Terra.
O Dia Depois de Amanhã
The Day After Tomorrow
Produção: EUA, 2004
Direção: Roland Emmerich
Com: Dennis Quaid, Jake Gyllenhaal
Quando: pré-estréia hoje; estréia em
circuito a partir de amanhã
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