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LITERATURA/"NOITE DO ORÁCULO"
Paul Auster cria um jogo de espelhos de seus livros
RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK
Se Paul Auster pudesse refazer o slogan daquela propaganda de uísque, provavelmente
diria: "Keep talking" -e isso não
mudaria o sentido da coisa.
O valor da literatura ou de qualquer narrativa, do papo jogado
fora, está em todas as obras do escritor. Ele sabe, e seus personagens também, que as palavras são
um grão mínimo de sanidade e
"um claro raio ordenador".
Em "Cortina de Fumaça", filme
cujo roteiro é seu, os cigarros são
apenas pretexto de conversa fiada
e troca de afeto entre homens
adultos. Na "Trilogia de Nova
York", um escritor chamado Paul
Auster passa a tarde conversando
com o protagonista da história,
Daniel Quinn, sobre a estrutura
de "Dom Quixote". A conversa
vai tão agradável que Auster, o
personagem, tem uma idéia: por
que não comemos uma omelete?
Logo, quando no início de "Noite do Oráculo" -livro que a
Companhia das Letras lança no
Brasil- o escritor Sidney Orr
atravessa a porta de entrada de
uma papelaria no Brooklyn, em
Nova York, sabemos que estamos
pisando em terreno conhecido.
Após meses se recuperando de
um acidente quase fatal, Orr compra um caderno de capa azul para
voltar a escrever. Além da literatura como caminho de volta à vida, a obra traz outros temas recorrentes do autor: o protagonista
convalescente ou deprimido, os
labirintos de narrativas dentro de
narrativas, um sujeito à procura
da própria identidade.
No entanto, esse é um livro diferente de todos os que Auster já escreveu. Repete o argumento, para
no final virar do avesso a lógica
que dita suas histórias, fazendo da
narrativa uma ameaça à vida e colocando a literatura em questão.
Acontece que Sidney Orr é casado, e Grace, sua mulher, parece se
distanciar cada vez mais de seu
marido enquanto ele enche as páginas do caderno azul. A loja em
que o escritor comprou o caderninho -fabricado em Portugal-
fecha suas portas dias depois. O
próprio Orr "desaparece" enquanto escreve -Grace diz não
tê-lo visto no escritório, após procurá-lo num momento em que
certamente ele se encontrava lá.
Um amigo do casal, John Trause, também escritor, alerta Orr
para o fascínio que esses cadernos
portugueses exercem -e para os
riscos que corre quem escreve neles. Num táxi, voltando para casa,
Grace e Orr discutem. Antes de
sumir misteriosamente e passar a
noite fora, ela pedirá que ele confie nela não importa o que ocorra
-e Orr registrará nas páginas em
que trabalha a história da traição
de Grace.
Como um Bentinho às avessas,
Orr decide desconfiar da narrativa que criou (não de sua veracidade, mas dos efeitos que ela pode
ter sobre sua vida), e não da mulher. Entre a literatura e Capitu, a
novidade do livro está na escolha
que seu protagonista faz. Afinal,
foi ela que pediu: "Apenas continue me amando". Se isso for possível, para que seguir tagarelando?
As histórias de Auster são freqüentemente comparadas às do
argentino Jorge Luis Borges, pelos
labirintos lógicos e jogos de espelho que cria ao fazer da ficção literária personagem da literatura.
O feito de "Noite", com sua referência às avessas ao elemento comum de vários romances de Auster, é levar essa lógica um passo
além, criando um jogo de espelhos entre esse livro e os demais, e
fazendo o conjunto da sua obra
parecer um labirinto de Borges.
Noite do Oráculo
Autor: Paul Auster
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38,50 (232 págs.)
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