|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Os "tarados" de Abu Ghraib
Até agora, são sete (três
mulheres e quatro homens)
os reservistas americanos apontados como responsáveis pelos abusos praticados na prisão de Abu
Ghraib.
O comando afirma que eles agiram por inspiração própria: uma
vez essas maçãs podres retiradas
da cesta, o problema estará resolvido. Muitos comentadores
acham difícil acreditar que os soldados tenham agido sem a ordem
ou, no mínimo, o encorajamento
implícito de seus superiores.
Mas num ponto todos parecem
concordar: os sete seriam um
bando de tarados.
Já surgiu a pergunta de sempre:
como foram fabricados os sete
horrorosos de Abu Ghraib? A gente é tarado de nascença ou se torna tarado à força de infâncias e
experiências traumáticas, infelizes ou, simplesmente, tortas? No
caso, essa pergunta é sem pertinência; eis por quê.
Quinze anos atrás, na França,
defendi minha tese de doutorado
em psicopatologia (o calhamaço,
traduzido em inglês pela editora
The Other Press, dorme na minha
gaveta, à espera de revisão e cortes que nunca tenho tempo de fazer). O ponto de partida de minhas indagações era um batalhão
de 500 reservistas da polícia alemã que, durante a Segunda Guerra Mundial, assassinaram metodicamente, com tiros individuais
na nuca, milhares de judeus poloneses, famílias com crianças e
mulheres.
Os ditos soldados alemães não
eram tropa de elite. Tinham-se
alistado na polícia porque essa escolha parecia garantir que ficariam longe da ativa, não arriscariam a pele e não teriam que matar inimigos. De forma parecida,
os sete de Abu Ghraib entraram
na National Guard (a reserva)
para conseguir bolsas para a universidade; nada a ver com os anseios militaristas dos voluntários
que compõem o Exército ou os fuzileiros navais.
Os reservistas alemães não tinham sido selecionados por alguma predisposição ao mal (quer
fosse de nascença, quer fosse por
história de vida). É impossível
imaginar que, por um milagre do
acaso, eles constituíssem uma turma de 500 assassinos potenciais.
Mas, se eram pessoas quaisquer,
como se tornaram capazes do
horror?
Note-se que a obediência às ordens não explica nada. Contrariamente ao que se imagina, durante toda a Segunda Guerra,
ninguém foi perseguido pela Justiça militar alemã por ter-se recusado a atormentar ou exterminar
populações civis. Os poucos soldados que não quiseram obedecer a
ordens genocidas foram apenas
dispensados da tarefa.
Conclusão: há sujeitos que nada, em sua história ou em seus genes, predispõe a ser torturadores
ou assassinos, mas que, numa situação social específica, sem precisar de ordens, tornam-se monstros. Ou seja, as condutas humanas não dependem só dos genes e
da história singulares de cada
um, mas também (e bastante) da
situação coletiva na qual cada
um está enredado na hora de
agir.
Uma experiência famosa (e relevante na argumentação de minha tese) foi conduzida em 1971
por Philip Zimbardo, um grande
psicólogo social que ainda ensina
na Universidade Stanford, na Califórnia. Numa prisão simulada,
Zimbardo encerrou 21 estudantes
escolhidos a esmo e divididos
(também a esmo) em dois grupos:
presos e guardas. Os guardas
eram livres para impor as punições que julgariam necessárias ao
bom funcionamento do estabelecimento. A experiência, que devia
durar duas semanas, foi interrompida no sexto dia, pois o comportamento dos guardas colocava
em perigo a saúde mental e a incolumidade física dos presos. Alguns dos abusos praticados se pareciam estranhamente com o que
aconteceu na prisão de Abu
Ghraib: presos desnudados, encapuzados e por aí vai.
Quais situações sociais transformam moços e moças de boa índole em algozes? A condição básica
para que isso aconteça é que a
sensação de pertencer solidamente a um grupo seja servida como
remédio contra as dores e as dúvidas que habitam a solidão do indivíduo. Em Abu Ghraib, as fotos-suvenir conferem aos sete a coesão "alegre" e brutal de um bando de amigos decididos a passar
férias memoráveis.
Mas é fácil encontrar outros
exemplos. A cada ano, uma excitação festiva e uma sensação coletiva de superioridade levam universitários bem-comportados a
torturar calouros estarrecidos.
Uma torcida pode converter um
bom pai de família em vândalo.
Uma multidão enfurecida faz de
cada um de seus membros um
linchador assassino. Uma burocracia bem organizada pode
transformar seus tranqüilos funcionários em agentes de extermínio.
A plasticidade social do sujeito
humano não constitui uma desculpa. Ao contrário, o indivíduo é
sempre responsável por não saber
resistir à sedução dos grupos nos
quais ele se perde.
No entanto, há também a responsabilidade de quem cria as
condições para que outros se percam na estupidez do grupo. Como? Por exemplo, organizando
uma prisão em que os guardas teriam poderes incontrolados sobre
seres ditos inferiores por raça, cultura ou religião.
Aliás, ao redigir uma ata de
acusação contra o comando americano, eu me indignaria, claro,
com o que aconteceu com os presos iraquianos de Abu Ghraib.
Mas também me indignaria com
o seguinte: foi permitido que sete
jovens soldados se transformassem em torturadores.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Arte: Especial retrata modismo dos coletivos Próximo Texto: Panorâmica - Visuais: Incêndio destrói obras da coleção Saatchi Índice
|