São Paulo, domingo, 27 de maio de 2007

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FERREIRA GULLAR

Os toxumanos


Às vezes, a história caminha guiada por fatores que o homem não pode controlar

SEGUNDO A discutível opinião de alguns cientistas sociais, a principal causa dos atuais problemas que levaram ao colapso de Toxu foi a revolução econômica que alterou radicalmente os hábitos e os valores dos toxumanos. As alterações foram minando as bases em que se apoiava a sociedade, a começar pelo surto industrial que provocou intensa migração de trabalhadores do interior para a capital, fazendo-a inchar do dia para a noite como um tumor maligno. Pela primeira vez, o povo toxumano conheceu, de fato, a miséria, dados os baixos salários pagos aos operários por uma jornada que chegava a 15 horas por dia e os obrigavam a morar em cortiços infectos, povoados de lacraias, ratos e a alimentar-se de sopa azeda e pão mofado.
Enquanto isto, as descobertas científicas corroíam as certezas seculares em que as pessoas se apoiavam, levando por água abaixo os valores morais e religiosos: as meninas se prostituíam, enquanto as famílias se desagregavam. Em compensação, uma nova idade (com automóveis e eletricidade) surgia de dentro da velha, revelando um novo tipo humano desinibido, que acreditava mais na livre iniciativa do que em Deus, mais nas leis do mercado do que na ética. O país modernizou-se, e, depois da máquina a vapor e da locomotiva, vieram o avião, o tanque de guerra, o telefone, o cinema, o rádio, a televisão. Isto no curso de apenas algumas décadas.
Em lugar do pensamento religioso, conservador e às vezes hipócrita, brotou uma nova visão intelectual que questionava profundamente os valores estabelecidos e propunha novas idéias que assustavam as senhoras pias mas também os empresários e o militares. O mais brilhante dos novos filósofos afirmava que valores como a compaixão, a solidariedade e o amor ao próximo foram inventados pelos fracos e covardes, pois os fortes amavam a luta, a festa e a guerra. "A vida é impulso vital, não tem lógica; a lógica foi inventada para domesticar a paixão, que é o verdadeiro motor da existência", afirmava ele.
Boa parte da juventude empolgou-se com essas idéias e passou a olhar seus pais e avós como criaturas emasculadas que haviam renunciado a viver a vida verdadeira. Não eram exemplos a ser seguidos.
Certamente nem todo mundo aderiu a essas idéias, mesmo porque a maioria da sociedade é sempre conservadora, temerosa de mudanças que comprometam sua segurança. Por isso, em resposta à nova filosofia , os padres e seus seguidores intensificaram a pregação da fé religiosa e da moral tradicional.
Mas, como se sabe, a história não aprende a caminhar nos tratados de filosofia. Ela muitas vezes caminha à doida, guiada por fatores que o homem não pode controlar. E assim surgiu uma nova geração de jovens rebeldes que passou a fazer, em canções e baladas, o elogio dos alucinógenos. Era como se dissessem: "O futuro é dos porcos e o presente é nosso".
Sempre houve em Toxu quem consumisse drogas. Mas, desta vez, eram milhares e milhares de garotos e garotas que, pelo país afora, aderiram a elas. Em face da crescente demanda, o tráfico ampliou-se rapidamente e, com ele, a cobiça e a disputa pelos pontos de droga. Cresceu também a repressão policial e a corrupção da polícia pelos traficantes, que agora dispunham de dinheiro a rodo para comprar também juízes e políticos. Na verdade uma nova força econômica emergira no planeta, e fora da lei. Por isso, não podem recorrer a ela para resolver suas disputas: têm que fazê-lo pelas armas, num jogo de vida ou morte.
Deste modo, uma guerra sem quartel alastrou-se por quase todo o país, pondo em risco a vida da população, que passou a viver em permanente estado de pânico.
O amplo consumo aumentou as conseqüências derivadas da droga, pois, embora na maioria das pessoas apenas provoque excitação, em muitas provoca surtos psicóticos. Assim foi que se multiplicaram os casos de netos assassinando avós, filhos matando pais, jovens suicidando-se em estado de delírio. Nem por isso a gente de classe média alta e os ricos -os maiores consumidores de drogas- desistiram de comprá-las.
Depois de alguns anos, a disputa pelo mercado de tóxicos estendeu-se a cada bairro, a cada avenida, a cada viela -e que o sangue corria pelas sarjetas como a água da chuva. Ao fim de poucos anos, o que restava da gente toxumana eram trastes humanos vagando por cidades fantasmas.
Para alguns estudiosos, porém, isto não passa de maledicência, pois o que de fato tirou Toxu do mapa foi, segundo eles, a erupção do vulcão Ékstazy ocorrida no ano 3005.


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