São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 2000


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Companhia Montalvo-Hervieu se inspira no surrealismo de Max Ernst para novo espetáculo
Montalvo cria na dança jardim para a diversidade

Divulgação
Cena de "Le Jardin Io Io Ito Ito"



Na coreografia multimídia "Le Jardin Io Io Ito Ito", grupo de José Montalvo questiona identidade atual


INÊS BOGÉA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após o sucesso de "Paradis" em 99, a companhia Montalvo-Hervieu volta ao Brasil para apresentar -em 30 de junho e 1º de julho, no Teatro Municipal de São Paulo, e 2 e 3 de julho, no do Rio- um novo espetáculo multimídia: "Le Jardin Io Io Ito Ito".
O título faz referência a uma colagem do surrealista Max Ernst (1891-1976). O balé pode ser descrito como "colagem" em vários sentidos. Criaturas híbridas, meio gente e meio bicho, habitam um jardim imaginário, construído pela dança, pelo cenário e pela projeção de vídeo. E "colagem" é uma boa descrição, também, dos métodos de composição coreográfica, combinando uma pluralidade de estilos: hip hop, break, balé clássico, dança chinesa, flamenca e rituais africanos.
Nesta entrevista por telefone, de Paris, o coreógrafo José Montalvo, que acaba de assumir o cargo de conselheiro artístico do Teatro Nacional de Chaillot, fala da política cultural francesa, da criação da coreografia e de seus trabalhos com dança para não-bailarinos.

Folha - Existe parentesco entre "Paradis", que mostrou no Brasil em 99, e "Le Jardin Io Io Ito Ito"?
José Montalvo -
Há vários anos venho me esforçando para construir uma grande peça, à maneira dos afrescos barrocos, onde cada pedaço pode ser visto também de forma autônoma.
É como uma corrente: "Paradis" seria um elo, auto-suficiente, mas integrado a ela; e "Le Jardin" também faria parte dessa mesma cadeia. É uma peça diferente, mas com ecos da anterior. Minha ambição é chegar a mostrar, numa noite, todos os pedaços.
Em "Paradis", o jogo se dava na fronteira movediça entre o real e suas representações, entre as imagens e o corpo real. Já em "Le Jardin", o vídeo serve para criar um espaço da fantasia, do imaginário, onde se vê a transformação do caos da natureza em cultura.

Folha - Até que ponto a referência ao surrealismo de Max Ernst é importante?
Montalvo -
Max Ernst criou foto-romances com personagens que têm corpos de bicho e cabeça de homem. Eu me inspirei nessa idéia para sugerir o que há de animal em cada um de nós, mas sob forma de fábula, de fantasia meio brincalhona. E a peça foi composta como uma colagem, fugindo à narrativa linear. Max Ernst foi um grande artista da colagem, e o título do espetáculo, então, serve de homenagem a esse mestre.

Folha - E o emprego do vídeo é especialmente importante?
Montalvo -
Há mais de dez anos venho trabalhando para inventar uma escritura coreográfica nascida da alternância entre imagem tecnológica e o corpo real. Mas, a cada vez, aquilo que é projetado, o que é narrado, é diferente. Aqui, num contexto que remete a Ernst, o que se vê na tela são personagens criados livremente, um pouco como num livro infantil.

Folha - Sua companhia, como outras deste porte na França, é beneficiária de um programa de financiamento do governo. Até que ponto a dança francesa depende deste financiamento hoje e quais são os limites que isso impõe?
Montalvo -
O Centro Coreográfico Nacional de Île-de-France, onde está baseada a minha companhia, é financiado pelo Estado e também pela administração local.
Esta contribuição faz parte de uma política centrada no estímulo à criação. Seria muito difícil para a dança francesa sobreviver sem esse apoio. Mesmo as companhias que gozam de reconhecimento internacional sofreriam muito e creio que 80% de todas as que existem praticamente não teriam condições de continuar.
Existem hoje 20 centros coreográficos nacionais, que são núcleos de excelência, com uma missão de criação, de difusão, de formação e sensibilização do público. Cada um fica sob os cuidados de um diretor, escolhido pela qualidade de seus trabalhos e de suas reflexões, e tem personalidade e necessidades próprias, contempladas diferentemente pelo programa de financiamento. É um programa generoso e muito importante para todos nós.

Folha - Muitas culturas e linguagens se cruzam nos seus trabalhos. Quanto isso é uma imagem da França hoje?
Montalvo -
Vejo esse espetáculo um pouco como uma homenagem ao cosmopolitismo, à diversidade, ao que se tornou a vida dos franceses hoje, isto é: cosmopolita, poliglota, multicultural.
É também um jogo com a memória da dança, que abriga práticas corporais muito diversas. Alarga muito o espectro que se viu em "Paradis", por exemplo.
Cada bailarino se apresenta um pouco como se estivesse atravessando um jardim imaginário e se tornasse um virtuose do instante, mas de um virtuosismo fundado em quase nada.

Folha - Como Flaubert, que queria escrever um livro sobre nada.
Montalvo -
Sim, sim! Mas é um verdadeiro virtuosismo escrever, ou dançar, sobre nada. As personagens em cena são insólitas. Os animais também, criaturas híbridas que vêm criar um universo imaginário, sugerindo os animais que carregamos por dentro, com suas emoções muito variadas.

Folha - Você tem feito espetáculos com gente que nunca dançou.
Montalvo -
Paralelamente ao meu trabalho de criação coreográfica, há dez anos venho inventando coreografias para pessoas que não praticam habitualmente a dança. A idéia é permitir que tenham contato com o prazer imemorial de dançar, e isso por meio de situações inéditas, inesperadas, que as surpreendam.
São coreografias escritas por encomenda de uma cidade, ou de algum grupo de pessoas, e dão conta, a cada vez, do contexto para o qual foram criadas. Já fizemos coreografias deste tipo envolvendo até mesmo, numa ocasião, 100 mil pessoas! São grandes projetos que vamos continuar desenvolvendo.
Para nós, são ocasiões para refletir sobre o lugar do artista no mundo de hoje, sobre o que a dança pode trazer como reflexão e percepção, em termos de uma melhor compreensão de si, e também sobre como a dança pode se apropriar de um espaço social, procurando efetivar pequenas utopias de proximidade. Sem cair numa visão exageradamente utópica do lugar da arte na cidade, mas sem deixar de propor as utopias modestas que se esforçam para transformar o presente. Sem visões de longo prazo, que tantas vezes implicam fechar os olhos para o sensível, para o presente.


Inês Bogéa é bailarina do grupo Corpo


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