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Companhia Montalvo-Hervieu se inspira no surrealismo de Max Ernst para novo espetáculo
Montalvo cria na dança jardim para a diversidade
Divulgação
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Cena de "Le Jardin Io Io Ito Ito" |
Na coreografia multimídia "Le Jardin Io Io Ito Ito", grupo de José Montalvo questiona identidade atual
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INÊS BOGÉA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Após o sucesso de "Paradis" em
99, a companhia Montalvo-Hervieu volta ao Brasil para apresentar -em 30 de junho e 1º de julho,
no Teatro Municipal de São Paulo, e 2 e 3 de julho, no do Rio-
um novo espetáculo multimídia:
"Le Jardin Io Io Ito Ito".
O título faz referência a uma colagem do surrealista Max Ernst
(1891-1976). O balé pode ser descrito como "colagem" em vários
sentidos. Criaturas híbridas, meio
gente e meio bicho, habitam um
jardim imaginário, construído
pela dança, pelo cenário e pela
projeção de vídeo. E "colagem" é
uma boa descrição, também, dos
métodos de composição coreográfica, combinando uma pluralidade de estilos: hip hop, break,
balé clássico, dança chinesa, flamenca e rituais africanos.
Nesta entrevista por telefone, de
Paris, o coreógrafo José Montalvo, que acaba de assumir o cargo
de conselheiro artístico do Teatro
Nacional de Chaillot, fala da política cultural francesa, da criação
da coreografia e de seus trabalhos
com dança para não-bailarinos.
Folha - Existe parentesco entre
"Paradis", que mostrou no Brasil
em 99, e "Le Jardin Io Io Ito Ito"?
José Montalvo -Há vários anos
venho me esforçando para construir uma grande peça, à maneira
dos afrescos barrocos, onde cada
pedaço pode ser visto também de
forma autônoma.
É como uma corrente: "Paradis" seria um elo, auto-suficiente,
mas integrado a ela; e "Le Jardin"
também faria parte dessa mesma
cadeia. É uma peça diferente, mas
com ecos da anterior. Minha ambição é chegar a mostrar, numa
noite, todos os pedaços.
Em "Paradis", o jogo se dava na
fronteira movediça entre o real e
suas representações, entre as imagens e o corpo real. Já em "Le Jardin", o vídeo serve para criar um
espaço da fantasia, do imaginário,
onde se vê a transformação do
caos da natureza em cultura.
Folha - Até que ponto a referência ao surrealismo de Max Ernst é
importante?
Montalvo - Max Ernst criou foto-romances com personagens que
têm corpos de bicho e cabeça de
homem. Eu me inspirei nessa
idéia para sugerir o que há de animal em cada um de nós, mas sob
forma de fábula, de fantasia meio
brincalhona. E a peça foi composta como uma colagem, fugindo à
narrativa linear. Max Ernst foi um
grande artista da colagem, e o título do espetáculo, então, serve de
homenagem a esse mestre.
Folha - E o emprego do vídeo é especialmente importante?
Montalvo - Há mais de dez anos
venho trabalhando para inventar
uma escritura coreográfica nascida da alternância entre imagem
tecnológica e o corpo real. Mas, a
cada vez, aquilo que é projetado, o
que é narrado, é diferente. Aqui,
num contexto que remete a Ernst,
o que se vê na tela são personagens criados livremente, um pouco como num livro infantil.
Folha - Sua companhia, como outras deste porte na França, é beneficiária de um programa de financiamento do governo. Até que ponto a dança francesa depende deste
financiamento hoje e quais são os
limites que isso impõe?
Montalvo - O Centro Coreográfico Nacional de Île-de-France, onde está baseada a minha companhia, é financiado pelo Estado e
também pela administração local.
Esta contribuição faz parte de
uma política centrada no estímulo à criação. Seria muito difícil para a dança francesa sobreviver
sem esse apoio. Mesmo as companhias que gozam de reconhecimento internacional sofreriam
muito e creio que 80% de todas as
que existem praticamente não teriam condições de continuar.
Existem hoje 20 centros coreográficos nacionais, que são núcleos de excelência, com uma
missão de criação, de difusão, de
formação e sensibilização do público. Cada um fica sob os cuidados de um diretor, escolhido pela
qualidade de seus trabalhos e de
suas reflexões, e tem personalidade e necessidades próprias, contempladas diferentemente pelo
programa de financiamento. É
um programa generoso e muito
importante para todos nós.
Folha - Muitas culturas e linguagens se cruzam nos seus trabalhos.
Quanto isso é uma imagem da
França hoje?
Montalvo - Vejo esse espetáculo
um pouco como uma homenagem ao cosmopolitismo, à diversidade, ao que se tornou a vida
dos franceses hoje, isto é: cosmopolita, poliglota, multicultural.
É também um jogo com a memória da dança, que abriga práticas corporais muito diversas.
Alarga muito o espectro que se
viu em "Paradis", por exemplo.
Cada bailarino se apresenta um
pouco como se estivesse atravessando um jardim imaginário e se
tornasse um virtuose do instante,
mas de um virtuosismo fundado
em quase nada.
Folha - Como Flaubert, que queria escrever um livro sobre nada.
Montalvo - Sim, sim! Mas é um
verdadeiro virtuosismo escrever,
ou dançar, sobre nada. As personagens em cena são insólitas. Os
animais também, criaturas híbridas que vêm criar um universo
imaginário, sugerindo os animais
que carregamos por dentro, com
suas emoções muito variadas.
Folha - Você tem feito espetáculos com gente que nunca dançou.
Montalvo - Paralelamente ao
meu trabalho de criação coreográfica, há dez anos venho inventando coreografias para pessoas
que não praticam habitualmente
a dança. A idéia é permitir que tenham contato com o prazer imemorial de dançar, e isso por meio
de situações inéditas, inesperadas, que as surpreendam.
São coreografias escritas por encomenda de uma cidade, ou de algum grupo de pessoas, e dão conta, a cada vez, do contexto para o
qual foram criadas. Já fizemos coreografias deste tipo envolvendo
até mesmo, numa ocasião, 100 mil
pessoas! São grandes projetos que
vamos continuar desenvolvendo.
Para nós, são ocasiões para refletir sobre o lugar do artista no
mundo de hoje, sobre o que a
dança pode trazer como reflexão
e percepção, em termos de uma
melhor compreensão de si, e também sobre como a dança pode se
apropriar de um espaço social,
procurando efetivar pequenas
utopias de proximidade. Sem cair
numa visão exageradamente utópica do lugar da arte na cidade,
mas sem deixar de propor as utopias modestas que se esforçam
para transformar o presente. Sem
visões de longo prazo, que tantas
vezes implicam fechar os olhos
para o sensível, para o presente.
Inês Bogéa é bailarina do grupo Corpo
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