|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARNALDO JABOR
"Missão Impossível 2" é um abacaxi assustador
Sinto-me ridículo, saindo
do cinema após ver "Missão
Impossível 2", carregando meus
pobres aparelhos conceituais e
críticos sobre ética e estética, que
me parecem inúteis diante da espantosa eficiência e da sinistra espetaculosidade deste videogame.
Sinto-me tão idiota quanto os
humanistas de galinheiro que,
diante do bruto darwinismo social instalado, repetem lugares-comuns sobre a "origem divina
do homem" ou como aqueles que
acham que a "globalização da
economia" destruirá os bons sentimentos de nossa taba utópica.
Eu, que me acho mais "pop",
mais "hip", mais "tchan" (oh, vão
narcisismo...), tento saudar a era
tecnológica com a esperança de
que algo surgirá do ventre do
monstro robótico, sei lá, uma
"Terceira Via" ética.
Mas, quando saio de "Missão
Impossível 2", acho que quebramos a cara mesmo.
Alguém me diz: "Pára de bancar o profundo... É apenas um filme...". Eu sei, mas sinto um calafrio. Quando eu fazia cinema, havia por trás da arte um projeto
ético mínimo, uma esperança de
beleza. Tudo isso acabou. A arte
de John Woo é uma incessante
máquina produzindo sensações,
para evitar o pensamento e a estesia. Uma antibeleza para negar o
sublime.
Quando o Francis Fukuyama
disse aquelas bobagens hegelianas de "fim da história", o ódio
despertado no mundo acadêmico
foi tanto que suspeitei que ele talvez tenha tocado em alguma ferida.
Saio do filme achando que Fukuyama atirou na "história" e
acertou no que não viu. Não é que
não há mais "história". O que
não há mais é "fim". Aí, foi um
gol filosófico. O "fim" acabou,
tanto como "término" ou como
"finalidade". Não chegaremos
mais a nada, a futuro algum, a
solução iluminista alguma; haverá apenas uma rotatividade de
fregueses num infernal shopping
center comandado pelos EUA.
Nunca haverá uma pausa para
meditação de classes ou de sábios
que tentarão trazer de volta uma
nova idéia de bem, de justiça e
outras utopias já exterminadas
entre feéricos efeitos especiais.
O próprio pensamento virou
um videogame para filósofos como o cínico Baudrillard, chutador emérito, praticante de um boliche filosófico que, de vez em
quando, acerta grandes sacadas.
A maioria se detém numa vaga
lamentação por uma humanidade perdida.
"Mas, puxa, continuas fazendo
pseudofilosofia por causa de um
filme abacaxi?", dizem de novo.
Sei que é apenas um filme. Não
sou tão burro como querem meus
inimigos. Mas estão ali os sinais
de nosso destino.
As personagens não são pessoas;
são as coisas, os carros, os helicópteros, as motos Triumph em duelo, os supercomputadores, os raios
laser, os infinitos "gadgets" de um
mundo ficcional da ciência que
formam um gigantesco
showroom de utilidades tecnológicas, em que as pessoas são um
mero pretexto para os efeitos especiais, em que o ralo drama de
um "Aristóteles digital" se desenrola.
Nestes filmes, como nos filmes
pornôs, deve haver pouco lero-lero e muita sacanagem. Ali não há
drama, pois o desejo dos produtores é justamente fazer o apagamento do drama humano em
nossas cabeças.
O ideal oculto na tela é a abolição de projetos e de esperança. A
ação na tela é incessante, de modo a nos paralisar na vida; o conflito é permanente, de modo a privar o espectador de conflitos reais.
Estamos cada vez mais aprisionados neste videogame operado
pelos Estados Unidos e, se eles, a
China ou algum "rogue country"
não destruírem o mundo "em
busca de mercados", talvez cheguemos a um futuro de felicidade
idiotizada, com a alegria de mongolóides, num eterno parque de
diversões da OMC, com "fast
food" e "fast life" para todos num
mundo sem história.
Neste filme quase não há sangue, apesar de muitas mortes. O
John Woo disse: "Pra que sangue?". "Coisas" não têm sangue.
Nos anos 80, os filmes violentos
ainda trabalhavam em cima de
nossa morbidez agressiva. Agora
o prazer da violência diminuiu...
Hoje é mais o prazer da eficiência
de eliminar inimigos ou competidores, como num boliche com
"pinballs" sangrentos.
A morte não é mais banalizada
nestes filmes, como era nos filmes
sádicos de antes. Agora o que há
não é propriamente "morte", mas
a ideia de "substituição de peças",
de reabastecimento.
Não há tragédia nem um iluminado sofrimento humano que nos
leve para um grau maior de sabedoria ou compaixão. Os heróis
não vencem porque são mais
bondosos ou porque têm um ideal
mais justo; vencem por mais eficiência.
Não há mais "vida" e "morte";
há "quebrar e consertar", a dialética binária de robôs, o bom ou o
mau funcionamento. Os dramas
gregos tinham uma função, buscavam a regulação do desejo na
"polis". Estes filmes buscam a
abolição do desejo.
Vocês dirão: "Deixa de bobagem, sempre foi assim, filmes comerciais, chanchadas e folhetins
para as massas...". Sim, tudo
bem... Mas há uma uniformidade
planetária nesses filmes que vai
muito além da doce tradição dos
antigos caça-níqueis.
Esses filmes são indícios de que,
além da arte, que hoje chora inutilmente a desumanização da vida, também os chavões do "entretenimento" estão em crise. Cada
vez uma tecnologia mais "hard" e
mais "loud" será necessária para
nos manter entretidos.
E tudo isso sem nenhum projeto
ideológico ou conspiratório de
Hollywood ou da CIA. Quem produz estas coisas, quem programa
o imaginário do mundo é tão inocente quanto as massas que o
consomem. Não há nenhum
"complô" para nos conquistar. Isto é que é assustador: tudo tem a
sinistra inocência de videogames
sem finalidade. Não é possível criticar um videogame. Além disso,
de que adianta eu escrever estas
linhas, se ninguém se preocupa
mais com uma besteira dessas?...
Texto Anterior: Taubaté reinaugura antigo teatro Próximo Texto: Artes Plásticas: Mostra põe realidade virtual no dia-a-dia Índice
|