São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARNALDO JABOR
"Missão Impossível 2" é um abacaxi assustador

Sinto-me ridículo, saindo do cinema após ver "Missão Impossível 2", carregando meus pobres aparelhos conceituais e críticos sobre ética e estética, que me parecem inúteis diante da espantosa eficiência e da sinistra espetaculosidade deste videogame.
Sinto-me tão idiota quanto os humanistas de galinheiro que, diante do bruto darwinismo social instalado, repetem lugares-comuns sobre a "origem divina do homem" ou como aqueles que acham que a "globalização da economia" destruirá os bons sentimentos de nossa taba utópica.
Eu, que me acho mais "pop", mais "hip", mais "tchan" (oh, vão narcisismo...), tento saudar a era tecnológica com a esperança de que algo surgirá do ventre do monstro robótico, sei lá, uma "Terceira Via" ética.
Mas, quando saio de "Missão Impossível 2", acho que quebramos a cara mesmo.
Alguém me diz: "Pára de bancar o profundo... É apenas um filme...". Eu sei, mas sinto um calafrio. Quando eu fazia cinema, havia por trás da arte um projeto ético mínimo, uma esperança de beleza. Tudo isso acabou. A arte de John Woo é uma incessante máquina produzindo sensações, para evitar o pensamento e a estesia. Uma antibeleza para negar o sublime.
Quando o Francis Fukuyama disse aquelas bobagens hegelianas de "fim da história", o ódio despertado no mundo acadêmico foi tanto que suspeitei que ele talvez tenha tocado em alguma ferida.
Saio do filme achando que Fukuyama atirou na "história" e acertou no que não viu. Não é que não há mais "história". O que não há mais é "fim". Aí, foi um gol filosófico. O "fim" acabou, tanto como "término" ou como "finalidade". Não chegaremos mais a nada, a futuro algum, a solução iluminista alguma; haverá apenas uma rotatividade de fregueses num infernal shopping center comandado pelos EUA.
Nunca haverá uma pausa para meditação de classes ou de sábios que tentarão trazer de volta uma nova idéia de bem, de justiça e outras utopias já exterminadas entre feéricos efeitos especiais.
O próprio pensamento virou um videogame para filósofos como o cínico Baudrillard, chutador emérito, praticante de um boliche filosófico que, de vez em quando, acerta grandes sacadas. A maioria se detém numa vaga lamentação por uma humanidade perdida.
"Mas, puxa, continuas fazendo pseudofilosofia por causa de um filme abacaxi?", dizem de novo. Sei que é apenas um filme. Não sou tão burro como querem meus inimigos. Mas estão ali os sinais de nosso destino.
As personagens não são pessoas; são as coisas, os carros, os helicópteros, as motos Triumph em duelo, os supercomputadores, os raios laser, os infinitos "gadgets" de um mundo ficcional da ciência que formam um gigantesco showroom de utilidades tecnológicas, em que as pessoas são um mero pretexto para os efeitos especiais, em que o ralo drama de um "Aristóteles digital" se desenrola.
Nestes filmes, como nos filmes pornôs, deve haver pouco lero-lero e muita sacanagem. Ali não há drama, pois o desejo dos produtores é justamente fazer o apagamento do drama humano em nossas cabeças.
O ideal oculto na tela é a abolição de projetos e de esperança. A ação na tela é incessante, de modo a nos paralisar na vida; o conflito é permanente, de modo a privar o espectador de conflitos reais.
Estamos cada vez mais aprisionados neste videogame operado pelos Estados Unidos e, se eles, a China ou algum "rogue country" não destruírem o mundo "em busca de mercados", talvez cheguemos a um futuro de felicidade idiotizada, com a alegria de mongolóides, num eterno parque de diversões da OMC, com "fast food" e "fast life" para todos num mundo sem história.
Neste filme quase não há sangue, apesar de muitas mortes. O John Woo disse: "Pra que sangue?". "Coisas" não têm sangue.
Nos anos 80, os filmes violentos ainda trabalhavam em cima de nossa morbidez agressiva. Agora o prazer da violência diminuiu... Hoje é mais o prazer da eficiência de eliminar inimigos ou competidores, como num boliche com "pinballs" sangrentos.
A morte não é mais banalizada nestes filmes, como era nos filmes sádicos de antes. Agora o que há não é propriamente "morte", mas a ideia de "substituição de peças", de reabastecimento.
Não há tragédia nem um iluminado sofrimento humano que nos leve para um grau maior de sabedoria ou compaixão. Os heróis não vencem porque são mais bondosos ou porque têm um ideal mais justo; vencem por mais eficiência.
Não há mais "vida" e "morte"; há "quebrar e consertar", a dialética binária de robôs, o bom ou o mau funcionamento. Os dramas gregos tinham uma função, buscavam a regulação do desejo na "polis". Estes filmes buscam a abolição do desejo.
Vocês dirão: "Deixa de bobagem, sempre foi assim, filmes comerciais, chanchadas e folhetins para as massas...". Sim, tudo bem... Mas há uma uniformidade planetária nesses filmes que vai muito além da doce tradição dos antigos caça-níqueis.
Esses filmes são indícios de que, além da arte, que hoje chora inutilmente a desumanização da vida, também os chavões do "entretenimento" estão em crise. Cada vez uma tecnologia mais "hard" e mais "loud" será necessária para nos manter entretidos.
E tudo isso sem nenhum projeto ideológico ou conspiratório de Hollywood ou da CIA. Quem produz estas coisas, quem programa o imaginário do mundo é tão inocente quanto as massas que o consomem. Não há nenhum "complô" para nos conquistar. Isto é que é assustador: tudo tem a sinistra inocência de videogames sem finalidade. Não é possível criticar um videogame. Além disso, de que adianta eu escrever estas linhas, se ninguém se preocupa mais com uma besteira dessas?...



Texto Anterior: Taubaté reinaugura antigo teatro
Próximo Texto: Artes Plásticas: Mostra põe realidade virtual no dia-a-dia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.