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São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Acidente de percurso da química e da gula

Não sei bem por quê, mas eram considerados primos. Em algum ponto havia uma bifurcação genética e os Almeidas da Silva tinham alguma coisa a ver com os Moraes, nossa família materna. Eram muitos, quase uma legião, e, tirando o mais velho, que era varão, o resto eram mulheres, seis ao todo. Casaram-se no devido tempo, um dos maridos mexia com produtos químicos, daí que todos eles receberam a classificação coletiva de "Químicos".
Eram gregários, viviam sempre juntos, moravam juntos, faziam tudo juntos. Além de gregários, eram vorazes. A especialidade deles era frequentar festas em que havia bufê. Casamentos, batizados, comemorações diversas, tudo que incluísse salgadinhos, docinhos e coquetéis adocicados e lá estavam eles, em romaria. Não se misturavam com os outros, mas dispunham de uma estratégia especial para se colocarem nos salões, nas sacristias, onde corresse qualquer variedade de boca livre.
O general-em-chefe, o líder, o mais escolado, era o Eurico, que ninguém sabia ao certo o que fazia, ou melhor, o que não fazia, pois nunca fora nem fizera nada, tinha pais velhos, esperava que eles morressem para assumir a renda de cinco casas no Cachambi. Casara-se aos 50 anos, dormia até tarde e à tarde, gostava de Vicente Celestino e de empadinhas de camarão. Sem falar nas coxinhas de galinha, que eram um capítulo à parte na enciclopédia de sua gula.
Empadinha de camarão ele encarava sem exigências, viessem de onde viessem, as domésticas, grandes e obesas, as pequeninas, feitas para tira-fome. Já as coxinhas de galinha exigiam dele uma investigação preliminar. Desdenhava coxinhas feitas em casa ou nas padarias. Só comia as da Colombo.
Era temeridade convocá-los para qualquer recepção. Bastava convidar um deles e todos se sentiam convidados, chegavam juntos, comiam juntos e juntos iam embora, empanturrados de canapés, bolinhos de queijo e bacalhau, croquetes de carne, empadinhas de camarão e, se fosse o caso, de coxinhas de galinha. Os demais Químicos, por osmose, por simbiose, por contágio, também só comiam coxinhas de galinha da Colombo.
Obedecendo ao comando do chefe, colocavam-se em posições estratégicas para não perderem de vista os garçons que circulavam com as bandejas. Não falavam com ninguém e ninguém falava com eles. Mas trocavam entre si sinais cabalísticos, códigos indecifráveis, avisando-se mutuamente do que havia, do que ainda haveria, da quantidade e da qualidade da oferta.
Reza a lenda familiar que houve um acidente de percurso dos Químicos causado pelo casamento da filha de um comerciante da rua Sacadura Cabral, atacadista de queijos, manteiga e demais laticínios. Os Químicos não conheciam nem o atacadista, nem os noivos, nem os parentes mais próximos, mas souberam do evento por interposta pessoa. Forçaram um convite, o atacadista era pródigo, disse vagamente que sim, mas esqueceu-se de mandar o convite.
Foi feita uma consulta formal ao Eurico: deviam ir ou não ir? Recusavam-se a ser bicões, a invadir festas estranhas, nesse ponto eram radicais. Mas a tal interposta pessoa falou genericamente, na base do "apareçam". Os Químicos apareceram.
Sem convite nas mãos e confiantes na infalibilidade do chefe, eles não guardaram o endereço onde rolaria o famoso, o farto bufê da Colombo, razão pela qual Eurico já salivava desde a véspera, prelibando as coxinhas de galinha que o esperavam.
Todos prontos, os varões enjaquetados em ternos azul-marinho e gravatas prateadas (uniforme dos Químicos para as grandes efemérides), as damas afogadas em tafetás chamejantes, na hora de partirem para a festa, ficaram sem saber para onde deviam ir. Novamente consultado, Eurico pela primeira vez teve um lapso de memória. Sacadura Cabral ou Gago Coutinho? A primeira rua era no centro, perto da praça Mauá. A segunda era nas Laranjeiras, perto do parque Guinle.
Convocados para a emergência, os neurônios do Eurico trabalharam rapidamente. Ninguém encomendaria o suntuoso bufê da Colombo para uma recepção nas proximidades da praça Mauá. Por exclusão, só podia ser na rua Gago Coutinho, aos pés do Palácio das Laranjeiras, onde então morava o presidente da República.
Rumaram para lá. E esbarraram numa dificuldade suplementar. A rua não era grande, mas tinha algumas casas e alguns edifícios. Espremidos numa kombi, que era alugada para tais ocasiões, esperaram que Eurico saltasse e fosse estudar o terreno.
Naquele tempo, o poeta Thiago de Mello havia retornado do exílio, no Chile, e morava naquela rua. Havia convidado alguns ex-asilados e amigos para uma reunião onde um poeta chileno, o Juvencio Valle, recitaria poemas sobre a libertação dos povos da América Latina e dos países afro-asiáticos. Havia alguns carros diante do edifício em que Thiago morava.
Eurico enviou os sinais respectivos e os Químicos desceram e logo subiram ao apartamento do Thiago, que estava cheio e ficou mais cheio com a explosão demográfica do espaço. Recitado o último poema do Juvencio Valle, Thiago mandou buscar umas pizzas numa padaria do largo do Machado.


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