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CARLOS HEITOR CONY
Acidente de percurso da química e da gula
Não sei bem por quê, mas
eram considerados primos.
Em algum ponto havia uma bifurcação genética e os Almeidas
da Silva tinham alguma coisa a
ver com os Moraes, nossa família
materna. Eram muitos, quase
uma legião, e, tirando o mais velho, que era varão, o resto eram
mulheres, seis ao todo. Casaram-se no devido tempo, um dos maridos mexia com produtos químicos, daí que todos eles receberam
a classificação coletiva de "Químicos".
Eram gregários, viviam sempre
juntos, moravam juntos, faziam
tudo juntos. Além de gregários,
eram vorazes. A especialidade deles era frequentar festas em que
havia bufê. Casamentos, batizados, comemorações diversas, tudo
que incluísse salgadinhos, docinhos e coquetéis adocicados e lá
estavam eles, em romaria. Não se
misturavam com os outros, mas
dispunham de uma estratégia especial para se colocarem nos salões, nas sacristias, onde corresse
qualquer variedade de boca livre.
O general-em-chefe, o líder, o
mais escolado, era o Eurico, que
ninguém sabia ao certo o que fazia, ou melhor, o que não fazia,
pois nunca fora nem fizera nada,
tinha pais velhos, esperava que
eles morressem para assumir a
renda de cinco casas no Cachambi. Casara-se aos 50 anos, dormia
até tarde e à tarde, gostava de Vicente Celestino e de empadinhas
de camarão. Sem falar nas coxinhas de galinha, que eram um capítulo à parte na enciclopédia de
sua gula.
Empadinha de camarão ele encarava sem exigências, viessem de
onde viessem, as domésticas,
grandes e obesas, as pequeninas,
feitas para tira-fome. Já as coxinhas de galinha exigiam dele
uma investigação preliminar.
Desdenhava coxinhas feitas em
casa ou nas padarias. Só comia as
da Colombo.
Era temeridade convocá-los para qualquer recepção. Bastava
convidar um deles e todos se sentiam convidados, chegavam juntos, comiam juntos e juntos iam
embora, empanturrados de canapés, bolinhos de queijo e bacalhau, croquetes de carne, empadinhas de camarão e, se fosse o caso,
de coxinhas de galinha. Os demais Químicos, por osmose, por
simbiose, por contágio, também
só comiam coxinhas de galinha
da Colombo.
Obedecendo ao comando do
chefe, colocavam-se em posições
estratégicas para não perderem
de vista os garçons que circulavam com as bandejas. Não falavam com ninguém e ninguém falava com eles. Mas trocavam entre si sinais cabalísticos, códigos
indecifráveis, avisando-se mutuamente do que havia, do que
ainda haveria, da quantidade e
da qualidade da oferta.
Reza a lenda familiar que houve um acidente de percurso dos
Químicos causado pelo casamento da filha de um comerciante da
rua Sacadura Cabral, atacadista
de queijos, manteiga e demais laticínios. Os Químicos não conheciam nem o atacadista, nem os
noivos, nem os parentes mais próximos, mas souberam do evento
por interposta pessoa. Forçaram
um convite, o atacadista era pródigo, disse vagamente que sim,
mas esqueceu-se de mandar o
convite.
Foi feita uma consulta formal
ao Eurico: deviam ir ou não ir?
Recusavam-se a ser bicões, a invadir festas estranhas, nesse ponto eram radicais. Mas a tal interposta pessoa falou genericamente, na base do "apareçam". Os
Químicos apareceram.
Sem convite nas mãos e confiantes na infalibilidade do chefe,
eles não guardaram o endereço
onde rolaria o famoso, o farto bufê da Colombo, razão pela qual
Eurico já salivava desde a véspera, prelibando as coxinhas de galinha que o esperavam.
Todos prontos, os varões enjaquetados em ternos azul-marinho e gravatas prateadas (uniforme dos Químicos para as grandes
efemérides), as damas afogadas
em tafetás chamejantes, na hora
de partirem para a festa, ficaram
sem saber para onde deviam ir.
Novamente consultado, Eurico
pela primeira vez teve um lapso
de memória. Sacadura Cabral ou
Gago Coutinho? A primeira rua
era no centro, perto da praça
Mauá. A segunda era nas Laranjeiras, perto do parque Guinle.
Convocados para a emergência,
os neurônios do Eurico trabalharam rapidamente. Ninguém encomendaria o suntuoso bufê da
Colombo para uma recepção nas
proximidades da praça Mauá.
Por exclusão, só podia ser na rua
Gago Coutinho, aos pés do Palácio das Laranjeiras, onde então
morava o presidente da República.
Rumaram para lá. E esbarraram numa dificuldade suplementar. A rua não era grande, mas tinha algumas casas e alguns edifícios. Espremidos numa kombi,
que era alugada para tais ocasiões, esperaram que Eurico saltasse e fosse estudar o terreno.
Naquele tempo, o poeta Thiago
de Mello havia retornado do exílio, no Chile, e morava naquela
rua. Havia convidado alguns ex-asilados e amigos para uma reunião onde um poeta chileno, o Juvencio Valle, recitaria poemas sobre a libertação dos povos da
América Latina e dos países afro-asiáticos. Havia alguns carros
diante do edifício em que Thiago
morava.
Eurico enviou os sinais respectivos e os Químicos desceram e logo
subiram ao apartamento do
Thiago, que estava cheio e ficou
mais cheio com a explosão demográfica do espaço. Recitado o último poema do Juvencio Valle,
Thiago mandou buscar umas pizzas numa padaria do largo do
Machado.
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