São Paulo, quarta-feira, 27 de junho de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Santos e profetas

O marxismo, para Aron, mimetizou a forma mental do cristianismo, aproveitando o declínio deste no século 20

REZA a lenda que, em pleno Maio de 68, o filósofo Raymond Aron costumava silenciar o seu auditório estudantil com uma pergunta simples. Confrontado com a selvajaria revolucionária dos estudantes, Aron disparava: "Meus caros, eu já li o "Das Kapital" umas três vezes. Quantas vezes os senhores já leram Marx?".
A turma ficava num silêncio humilhante e não é difícil entender por que: nos últimos dias, e graças a um convite da Liberty Fund (uma poderosa fundação que, entre as 160 conferências anuais que promove pelo mundo inteiro, escolheu Lisboa para realizar a última), tenho lido e, em certos casos, relido o pensamento de Aron. Com delícia e proveito.
A forma mais fácil de explicar a importância de Aron seria dizer que o pensamento político contemporâneo não é entendível sem ele. Mas a verdadeira nobreza deste homem, baixo em estatura física mas gigantesco em estatura moral, esteve no fato de ele não ter sucumbido aos apelos totalitários que conquistavam colegas de geração, como Sartre ou Merleau-Ponty.
Aron resistiu. E resistiu porque, ao contrário dos estudantes, Aron leu e releu o santo Marx para explicar o apelo do profeta. Digo "profeta" e digo bem: para Aron, o fascínio de Marx só se explica se entendermos o marxismo, quer como "profecia", quer como "religião secular".
Uma "religião secular", como o nome indica, não é mais do que uma transposição da religiosidade tradicional para uma linguagem ideológica. O marxismo, para Aron, mimetizou a forma mental do cristianismo, aproveitando-se do seu evidente declínio no século 20.
Assim, e tal como o cristianismo, o marxismo também promete a salvação para os humilhados e ofendidos; porém, e ao contrário do cristianismo, o reino final (o reino do proletariado, e já não de Deus) surge como uma promessa teleológica terrena, e não transcendente.
Isso só foi possível pelo "profetismo" de Marx. Pela certeza "científica" de que o capitalismo acabaria por gerar a sua própria destruição, conduzindo a humanidade para uma sociedade sem classes. Claro que Marx não estabeleceu um prazo para esse triunfo final, e foi essa radical indeterminação que permitiu a emergência de Lênin e a urgência da revolução. Mas a combinação da "religiosidade" marxista com o seu "profetismo" historicista foi o coquetel ideal para conquistar os intelectuais do século.
Hoje, com a queda do Muro de Berlim e a triste confirmação de que o capitalismo não gerou a sua própria sepultura, o que resta de Marx?
Com a exceção da América Latina, onde a história chega sempre atrasada algumas décadas, é provável que Marx sobreviva no saguão de universidades ou folhetins culturais. E, claro, nas passeatas de Porto Alegre, que curiosamente teriam horrorizado o próprio Marx: lutar contra o capitalismo é impedir o curso "científico" da história, ou seja, impedir que o capitalismo se destrua internamente. É, no fundo, fazer o jogo da reação: uma ironia filosófica que os turistas de Porto Alegre saberiam se, ao contrário dos alunos de Aron, tivessem lido Marx umas três vezes.


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