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MARCELO COELHO
Notícias de um manicômio
Não há como negar a sucessão de horrores em que consiste a história humana
A CORRUPÇÃO toma conta de
tudo, a miséria das massas
não diminui, os políticos que
se dizem amigos do povo se refestelam em banquetes, ninguém merece
confiança, antigos tiranos foram
derrotados, mas outros tomaram
o seu lugar.<
Quem diz isso é o revolucionário
francês Jean-Paul Marat (1743-1793), momentaneamente retirado
da banheira onde se trata de cruéis
doenças de pele. Seus seguidores
compõem uma massa horrível de
desdentados e molambentos, e gritam com entusiasmo: "Somos todos
normais e queremos a liberdade".
Querem a liberdade, mas não são
tão normais assim. São os internos
de um hospício. O homem que discursa para eles não é o verdadeiro
Marat, mas um louco também. Todos estão encenando uma peça, escrita, aliás, por outro doente mental:
ninguém menos do que o marquês
de Sade, também recolhido ao manicômio de Charenton.
O filme é "Marat-Sade", ou, para
citar o título por extenso, "A Perseguição e o Assassinato de Jean-Paul
Marat tal como Encenados pelos Internos do Asilo de Charenton sob a
Direção do Marquês de Sade".
Glenda Jackson é Charlotte Corday, ou melhor, é uma doente melancólica, acometida de crises de sono, a quem é confiado o papel da assassina de Marat. Ian Richardson,
apresentado como um "bem-aventurado paranóico" no início da peça,
deverá interpretar o líder revolucionário francês, enquanto Patrick Magee é o marquês de Sade, cujas características psicológicas dispensam
detalhamento.
Trata-se da versão cinematográfica da montagem, dirigida por Peter
Brook em 1967, da peça "Marat-Sade", de Peter Weiss (1916-1982).
Está agora disponível em DVD dentro da coleção "Cinema Avant-Garde", de que o selo Magnus Opus
teve a ousadia de produzir, até agora,
oito volumes.
Arte de vanguarda não é muito a
minha praia, embora seja inegável o
interesse histórico de vários curta-metragens dessa série: há desde filmes de Duchamp, Léger e Man Ray
a curtas de Clive Barker. Seja como
for, o espetáculo de Peter Brook não
tem nada de abstruso e incompreensível. Há, naturalmente, closes
de gente muito feia e perturbada,
gritarias, maquiagens e penteados
grotescos. Afinal, a cena se passa
num manicômio do século 19.
O que possa haver de "desagradável" nesses momentos não choca,
todavia, o espectador: as questões
políticas e filosóficas em cena são
suficientemente ricas e nuançadas
para fasciná-lo, sem que as exterioridades mais desesperadas da encenação ocupem o primeiro plano.
Pode ser que, nos anos 60, a peça
correspondesse a outras expectativas, contraculturais e libertárias.
"Qual o sentido de uma revolução",
pergunta o marquês de Sade, "sem
uma cópula generalizada?"
Hoje em dia, é menos a defesa do
sexo livre do que a crítica da revolução o que mais ressalta do texto.
Mesmo na época, sem dúvida, haveria argumentos para considerar o
espetáculo "contra-revolucionário",
apesar da aparente linguagem
transgressiva.
Marquês de Sade é calmo, tem o
olhar triste e sábio de quem já não
acredita mais em nada ("Só acredito
em mim mesmo", diz a certa altura),
e a câmera muitas vezes o trata como se ele possuísse a chave para o
entendimento da história humana.
"Não há nada", diz Sade, "que eu
não seja capaz de fazer. E tudo me
enche de horror." Depois de Stálin,
Mao e Pol Pot, o potencial de barbárie contido nas promessas revolucionárias de esquerda sem dúvida
faz de Sade uma espécie de profeta,
ao menos numa peça em que seu desencanto é contraposto ao terrorismo militante e fraterno de Marat.
Este, o revolucionário, é, sem dúvida, menos lúcido. "Matamos os velhos tiranos", diz Marat, "agora temos novos". Mas, continua ele, "eu
acredito na revolução". Enquanto
isso, um louco anônimo, arrastando-se pelo chão do hospício, assume,
por assim dizer, a voz da humanidade inteira: "Tenho mil anos e ajudei
a cometer milhões de assassinatos.
Eu sou um animal enlouquecido.
Prisões não me seguram: eu sempre
escaparei".
Não há como negar a sucessão de
horrores em que consiste, à esquerda e à direita, a história humana. A
peça de Peter Weiss não se limita,
entretanto, a expressar uma neutralidade desesperada. Como todo
grande texto teatral, importa menos
dizer que ninguém tem razão e sim
dar, a cada um, razões convincentes
para o que diz e o que faz. Mesmo
que todos sejam, como sabemos, internos do mesmo hospício.
coelhofsp@uol.com.br
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