São Paulo, quarta-feira, 27 de junho de 2007

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MARCELO COELHO

Notícias de um manicômio

Não há como negar a sucessão de horrores em que consiste a história humana

A CORRUPÇÃO toma conta de tudo, a miséria das massas não diminui, os políticos que se dizem amigos do povo se refestelam em banquetes, ninguém merece confiança, antigos tiranos foram derrotados, mas outros tomaram o seu lugar.<
Quem diz isso é o revolucionário francês Jean-Paul Marat (1743-1793), momentaneamente retirado da banheira onde se trata de cruéis doenças de pele. Seus seguidores compõem uma massa horrível de desdentados e molambentos, e gritam com entusiasmo: "Somos todos normais e queremos a liberdade".
Querem a liberdade, mas não são tão normais assim. São os internos de um hospício. O homem que discursa para eles não é o verdadeiro Marat, mas um louco também. Todos estão encenando uma peça, escrita, aliás, por outro doente mental: ninguém menos do que o marquês de Sade, também recolhido ao manicômio de Charenton.
O filme é "Marat-Sade", ou, para citar o título por extenso, "A Perseguição e o Assassinato de Jean-Paul Marat tal como Encenados pelos Internos do Asilo de Charenton sob a Direção do Marquês de Sade".
Glenda Jackson é Charlotte Corday, ou melhor, é uma doente melancólica, acometida de crises de sono, a quem é confiado o papel da assassina de Marat. Ian Richardson, apresentado como um "bem-aventurado paranóico" no início da peça, deverá interpretar o líder revolucionário francês, enquanto Patrick Magee é o marquês de Sade, cujas características psicológicas dispensam detalhamento.
Trata-se da versão cinematográfica da montagem, dirigida por Peter Brook em 1967, da peça "Marat-Sade", de Peter Weiss (1916-1982).
Está agora disponível em DVD dentro da coleção "Cinema Avant-Garde", de que o selo Magnus Opus teve a ousadia de produzir, até agora, oito volumes.
Arte de vanguarda não é muito a minha praia, embora seja inegável o interesse histórico de vários curta-metragens dessa série: há desde filmes de Duchamp, Léger e Man Ray a curtas de Clive Barker. Seja como for, o espetáculo de Peter Brook não tem nada de abstruso e incompreensível. Há, naturalmente, closes de gente muito feia e perturbada, gritarias, maquiagens e penteados grotescos. Afinal, a cena se passa num manicômio do século 19.
O que possa haver de "desagradável" nesses momentos não choca, todavia, o espectador: as questões políticas e filosóficas em cena são suficientemente ricas e nuançadas para fasciná-lo, sem que as exterioridades mais desesperadas da encenação ocupem o primeiro plano. Pode ser que, nos anos 60, a peça correspondesse a outras expectativas, contraculturais e libertárias.
"Qual o sentido de uma revolução", pergunta o marquês de Sade, "sem uma cópula generalizada?"
Hoje em dia, é menos a defesa do sexo livre do que a crítica da revolução o que mais ressalta do texto. Mesmo na época, sem dúvida, haveria argumentos para considerar o espetáculo "contra-revolucionário", apesar da aparente linguagem transgressiva.
Marquês de Sade é calmo, tem o olhar triste e sábio de quem já não acredita mais em nada ("Só acredito em mim mesmo", diz a certa altura), e a câmera muitas vezes o trata como se ele possuísse a chave para o entendimento da história humana.
"Não há nada", diz Sade, "que eu não seja capaz de fazer. E tudo me enche de horror." Depois de Stálin, Mao e Pol Pot, o potencial de barbárie contido nas promessas revolucionárias de esquerda sem dúvida faz de Sade uma espécie de profeta, ao menos numa peça em que seu desencanto é contraposto ao terrorismo militante e fraterno de Marat.
Este, o revolucionário, é, sem dúvida, menos lúcido. "Matamos os velhos tiranos", diz Marat, "agora temos novos". Mas, continua ele, "eu acredito na revolução". Enquanto isso, um louco anônimo, arrastando-se pelo chão do hospício, assume, por assim dizer, a voz da humanidade inteira: "Tenho mil anos e ajudei a cometer milhões de assassinatos. Eu sou um animal enlouquecido. Prisões não me seguram: eu sempre escaparei".
Não há como negar a sucessão de horrores em que consiste, à esquerda e à direita, a história humana. A peça de Peter Weiss não se limita, entretanto, a expressar uma neutralidade desesperada. Como todo grande texto teatral, importa menos dizer que ninguém tem razão e sim dar, a cada um, razões convincentes para o que diz e o que faz. Mesmo que todos sejam, como sabemos, internos do mesmo hospício.


coelhofsp@uol.com.br

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