São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2008

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"Sua vida era a sua obra", diz biógrafo

Livro tira Jayme Ovalle da sombra dos amigos escritores que registraram sua fala poética e suas histórias inusitadas

Título, que será lançado na Flip, mostra fascínio exercido sobre artistas por boêmio, que virou inclusive personagem de Sabino

Julia Moraes/Folha Imagem
Jaime Ovalle (à esq.) com Otto Lara Resende e Vinicius de Moraes durante a entrevista que deu aos dois amigos, em 1953

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA REPORTAGEM LOCAL

Não é preciso ir fundo nas obras de Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes e Fernando Sabino, entre outros, para se deparar com o nome de Jayme Ovalle. Mas, para saber quem foi Jayme Ovalle (1894-1955), é preciso.
O jornalista e escritor Humberto Werneck, 63, fez isso. O resultado é a biografia "Jayme Ovalle - O Santo Sujo", que está chegando às livrarias e será lançada na Flip (Festa Literária Internacional de Parati).
"Ele era alguém interessante, refletido nos outros. Mas você não sabia a fonte daquilo. Que diabos é esse cara por quem Bandeira era tão encantado? E também Vinicius, Fernando, Paulo Mendes Campos?", diz Werneck, relembrando a fagulha que deu origem ao livro.
Na verdade, vem de 1962 seu fascínio por esse compositor, poeta e boêmio que é mais importante pela presença nas obras dos amigos do que pelo que criou. Naquele ano, ele leu o conto "O Suicida", de Ivan Ângelo, cuja epígrafe era "[o suicídio] é um ato de publicidade: a publicidade do desespero", frase de Ovalle dita a Vinicius e Otto Lara Resende numa entrevista de 1953.
A cada menção que encontrava, o interesse crescia. Em 92, conseguiu uma bolsa para fazer a biografia. Mas a "inadimplência escandalosa" e a enorme dificuldade para encontrar informações sobre um homem de história muito mais oral que escrita o fez fracassar na primeira tentativa -e nas seguintes. Nunca desistiu de todo, mas só em 2008 arrumou fôlego para concluir um trabalho por si só "ovalliano".
"Eu uso a imagem de que Ovalle é um avião que explodiu no ar. Os técnicos começam a montar depois para descobrir o que aconteceu", diz Werneck, que afirma ter encontrado na pesquisa "uma mentiralhada, versões distorcidas. Ele virou um cabide no qual quem queria pendurava uma coisa".

Pomba e manequim
Mas, também, como não folclorizar um homem que se apaixonou por uma pomba que o visitava num hotel do Rio e por um manequim, que costumava abraçar postes de luz com ternura, usava monóculo e passava graxa de sapato no cabelo?
As características faziam parte de uma personalidade sedutora. Lendo só jornais e a Bíblia, tendo estudado pouquíssimo na Belém natal, era capaz de se expressar com força poética nas conversas cotidianas e elaborar teorias complexas na mesa de bar -como a "nova gnomonia", divisão dos seres humanos em cinco tipos que virou febre entre intelectuais a partir de seu registro por Bandeira, numa crônica de 1931.
Fernando Sabino registrou frases suas e pôs na boca de Germano, personagem de "O Encontro Marcado" inspirado em Ovalle: "O passarinho é o soneto de Deus"; "O silêncio das coisas tem um sentido". E havia sua mania por diminutivos: "Deixa eu usar o meu lutinho!", disse certa vez, de preto, a Bandeira, que adotou o jeito de falar até na sua obra ("Meu Jesus Cristinho!"); Vinicius foi outro contaminado.
Ovalle poderia ter sido um grande compositor. Teve formação precária, mas tocava bem violão e piano. Fez sucesso com "Azulão", parceria com Bandeira gravada por Elizeth Cardoso, Nara Leão e outros; mas parou em 33 criações. Por ser a idade de Cristo crucificado, considerava o número ideal. Sua poesia também foi marcada por seu cristianismo muito particular -discutia com Deus, chamava-o de "Neguinho", às vezes blasfemava, em outras se batia gritando "apanha, judeu!", embora a ascendência judaica não fosse certa.
A maior parte dos poemas escreveu em inglês, entre 1933 e 1937, quando viveu em Londres transferido pela Alfândega brasileira, do qual sempre foi funcionário exemplar. Mas, mesmo morando na Inglaterra e, de 46 a 50, em Nova York, nunca falou inglês bem. Queria escrever na língua para atingir mais leitores, ingênua megalomania que retratava a criança que, para os amigos, sempre foi.

"Bastava a presença"
Quando Ovalle morreu, Dante Milano escreveu a melhor definição do amigo, transcrita por Werneck no livro. Aqui, uma parte: "Tudo o que fazia era prodigioso, mas não se dava ao trabalho de realizar. Não podia, não havia tempo. [...] Do pouco que resta de sua passagem pela Terra, há um livro em inglês ["The Foolish Bird'], ditado em transe a uma amiga e secretária, e algumas músicas fugitivas e encantadas. E basta. Nem era preciso tanto. De tal homem bastava a presença".
Ovalle não escreveu nem uma linha da "História de São Sujo", projeto autobiográfico. "Sua vida era a sua obra", diz Werneck. "É impressionante um cara influenciar tanta gente sem ter obra. Se sou Drummond e influencio você, é óbvio. Mas sem ter obra?!"
Homem de muitos amores, de prostitutas a socialites, Ovalle só se casou com a americana Virginia Peckham (1925-2000), que tentou defini-lo a Werneck: "Um sujeito estranho. Boníssimo. Muito infantil. Provavelmente santo. Mas não desta vida". A filha do casal, Mariana, 56, mora no Rio.


JAYME OVALLE - O SANTO SUJO
Autor:
Humberto Werneck
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 55 (400 págs.)


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