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CARLOS HEITOR CONY
A inutilidade do dilúvio
Num primeiro momento, o problema maior do povo alemão era a enorme inflação
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EMBORA NEGADO ou minimizado pelas autoridades do governo, o monstro da inflação
(com perdão do lugar-comum) parece estar renascendo das cinzas, tal
como a Fênix de outro lugar comum.
Em linhas gerais, o país atravessa
uma fase razoável, tudo podia ser
melhor, mas tudo podia ser pior.
O monstro de plantão, que ocupa
80% da mídia (jornais, revistas, rádios e TVs) é a corrupção em diversos níveis.
Não é o resultado de um erro técnico ou político, mas a conseqüência
da impunidade a que todos estamos
habituados.
Clamar contra a corrupção é outro
lugar-comum, seria o terceiro desta
crônica. E não é de hoje que a humanidade -e não apenas o Brasil- reclama da falta de ética na política e na administração dos povos. Sobre o
assunto, seria bom citar Flaubert:
"Nunca se disse nada com tantas palavras".
Excluída a corrupção, da qual dificilmente nos livraremos, temos de
encarar novamente a ameaça de um
surto inflacionário que nos levará de
volta aos tempos difíceis, para não
dizer dramáticos.
Tempos em que os cidadãos, além
de penalizados com as taxas, juros e
incertezas, são condenados a ser
guarda-livros de si próprios, tantos
são os gatilhos e macetes a que são
obrigados para pagar uma fatura de
hospital, uma reforma no fogão, um
colégio para os filhos.
O Brasil é um país de guarda-livros, não exatamente de economistas. Lembro outros países que foram
maltratados com índices bem superiores aos nossos. Não muito longe,
no tempo e no espaço, México, Bolívia, Argentina. Alguns anos atrás, Israel. Mais distante -e talvez o melhor exemplo- a Alemanha saída da
República de Weimar.
Sei que não se deve citar a façanha
-que afinal terminou mal para a
própria Alemanha e para a humanidade-, mas a inflação alemã no inicio dos anos 30 foi certamente a
maior da história.
A chegada do Partido Nazista ao
poder, em 1933, teria sido apenas
uma experiência a mais no entra-e-sai de governos que tentavam levantar a Alemanha do desastre da Primeira Guerra Mundial e do Tratado
de Versalhes.
Num primeiro momento -é bom
não esquecer o detalhe-, o povo alemão não estava interessado em conquistar o mundo, em afirmar a superioridade racial dos arianos, em exterminar os judeus.
O problema maior -e o mais imediato- era a inflação. E a inflação foi
combatida, não com emendas à
Constituição nem com pacotões saídos das provetas dos tecnocratas.
O combate foi por meio da abertura de obras, da criação de empregos.
O plano da construção de estradas
pareceu absurdo na época.
Os alemães perguntavam por que
tantas e tão confortáveis estradas se
a economia estava parada, havia
poucos carros, o cidadão médio não
podia viajar nem mesmo para dentro de seu país, pois os tempos eram
duros e a prioridade era a comida, o
aquecimento das casas.
Mas as estradas foram feitas, elas
geraram empregos, tiraram da inércia a pesada maquina industrial que
se emperrava.
Três anos depois, em 1936, a Alemanha promovia as Olimpíadas, e o
mundo ficava admirado de sua riqueza.
Três anos mais tarde, em 1939, ela
se sentiu suficientemente forte para
desencadear uma nova guerra mundial -e foi preciso que todos se unissem para acabar com o dragão que
saíra das entranhas da maior inflação de todos os tempos.
Evidente que a Alemanha quebrou a cara em todos os sentidos, e
não foi a inflação a causa única de
sua desgraça.
Mas como, segundo os entendidos
em alma, a ociosidade é a mãe de todos os vícios, a inflação está na raiz
de todos os males físicos e morais de
um povo.
Neste particular, não devemos ficar surpreendidos com a onda de
corrupção que varre o país. Ela é irmã siamesa dos índices de inflação
que, segundo alguns, explodiram no
governo desenvolvimentista de JK,
segundo outros, nasceram com a
vinda de d. João 6º, ou seja, há exatos
200 anos .
Comecei a crônica citando Flaubert e a terminarei citando Dostoievski, a última frase em "Os Irmãos Karamazov": "Somos culpados de tudo e por todos e todos são
culpados por um".
Não se trata de paráfrase do lema
atribuído aos três mosqueteiros. É
bem mais do que isso: é a própria
causa do Dilúvio, quando Deus, segundo o Velho Testamento, só encontrou um Justo na face da Terra.
Que se deixou embriagar pelas filhas
-e tudo começou de novo.
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