São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

A inutilidade do dilúvio


Num primeiro momento, o problema maior do povo alemão era a enorme inflação

EMBORA NEGADO ou minimizado pelas autoridades do governo, o monstro da inflação (com perdão do lugar-comum) parece estar renascendo das cinzas, tal como a Fênix de outro lugar comum.
Em linhas gerais, o país atravessa uma fase razoável, tudo podia ser melhor, mas tudo podia ser pior.
O monstro de plantão, que ocupa 80% da mídia (jornais, revistas, rádios e TVs) é a corrupção em diversos níveis.
Não é o resultado de um erro técnico ou político, mas a conseqüência da impunidade a que todos estamos habituados.
Clamar contra a corrupção é outro lugar-comum, seria o terceiro desta crônica. E não é de hoje que a humanidade -e não apenas o Brasil- reclama da falta de ética na política e na administração dos povos. Sobre o assunto, seria bom citar Flaubert: "Nunca se disse nada com tantas palavras".
Excluída a corrupção, da qual dificilmente nos livraremos, temos de encarar novamente a ameaça de um surto inflacionário que nos levará de volta aos tempos difíceis, para não dizer dramáticos.
Tempos em que os cidadãos, além de penalizados com as taxas, juros e incertezas, são condenados a ser guarda-livros de si próprios, tantos são os gatilhos e macetes a que são obrigados para pagar uma fatura de hospital, uma reforma no fogão, um colégio para os filhos.
O Brasil é um país de guarda-livros, não exatamente de economistas. Lembro outros países que foram maltratados com índices bem superiores aos nossos. Não muito longe, no tempo e no espaço, México, Bolívia, Argentina. Alguns anos atrás, Israel. Mais distante -e talvez o melhor exemplo- a Alemanha saída da República de Weimar.
Sei que não se deve citar a façanha -que afinal terminou mal para a própria Alemanha e para a humanidade-, mas a inflação alemã no inicio dos anos 30 foi certamente a maior da história.
A chegada do Partido Nazista ao poder, em 1933, teria sido apenas uma experiência a mais no entra-e-sai de governos que tentavam levantar a Alemanha do desastre da Primeira Guerra Mundial e do Tratado de Versalhes.
Num primeiro momento -é bom não esquecer o detalhe-, o povo alemão não estava interessado em conquistar o mundo, em afirmar a superioridade racial dos arianos, em exterminar os judeus.
O problema maior -e o mais imediato- era a inflação. E a inflação foi combatida, não com emendas à Constituição nem com pacotões saídos das provetas dos tecnocratas.
O combate foi por meio da abertura de obras, da criação de empregos. O plano da construção de estradas pareceu absurdo na época.
Os alemães perguntavam por que tantas e tão confortáveis estradas se a economia estava parada, havia poucos carros, o cidadão médio não podia viajar nem mesmo para dentro de seu país, pois os tempos eram duros e a prioridade era a comida, o aquecimento das casas.
Mas as estradas foram feitas, elas geraram empregos, tiraram da inércia a pesada maquina industrial que se emperrava.
Três anos depois, em 1936, a Alemanha promovia as Olimpíadas, e o mundo ficava admirado de sua riqueza.
Três anos mais tarde, em 1939, ela se sentiu suficientemente forte para desencadear uma nova guerra mundial -e foi preciso que todos se unissem para acabar com o dragão que saíra das entranhas da maior inflação de todos os tempos.
Evidente que a Alemanha quebrou a cara em todos os sentidos, e não foi a inflação a causa única de sua desgraça.
Mas como, segundo os entendidos em alma, a ociosidade é a mãe de todos os vícios, a inflação está na raiz de todos os males físicos e morais de um povo.
Neste particular, não devemos ficar surpreendidos com a onda de corrupção que varre o país. Ela é irmã siamesa dos índices de inflação que, segundo alguns, explodiram no governo desenvolvimentista de JK, segundo outros, nasceram com a vinda de d. João 6º, ou seja, há exatos 200 anos .
Comecei a crônica citando Flaubert e a terminarei citando Dostoievski, a última frase em "Os Irmãos Karamazov": "Somos culpados de tudo e por todos e todos são culpados por um".
Não se trata de paráfrase do lema atribuído aos três mosqueteiros. É bem mais do que isso: é a própria causa do Dilúvio, quando Deus, segundo o Velho Testamento, só encontrou um Justo na face da Terra. Que se deixou embriagar pelas filhas -e tudo começou de novo.


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