São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Vida simples

Primeiro romance de Ivana Arruda Leite é uma narrativa marcada pela nostalgia da vida autêntica

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O HOTEL Novo Mundo, na praia do Flamengo, é o cenário do primeiro parágrafo de "Quase Memória", o lugar em que o narrador autobiográfico de Carlos Heitor Cony recebe um misterioso embrulho cujo remetente é seu pai, morto dez anos antes.
O "Hotel Novo Mundo" que dá título ao primeiro romance da contista Ivana Arruda Leite é uma modestíssima pensão no centro de São Paulo, sem memória ou sombra do glamour (mesmo decadente) do homônimo carioca. A coincidência -intencional ou não- oferece um paralelo entre as duas cidades que se estende ao conjunto dessa narrativa que oscila entre nostalgia da simplicidade e repulsa ao artifício. Renata, a protagonista de "Hotel Novo Mundo", é uma mulher traída pelo marido que volta do Rio de Janeiro -onde vivia em ritmo de coluna social- para a São Paulo natal.
Na ponte aérea, faz amizade com um bancário também de mudança e instala-se com ele no tal hotelzinho (mas em quartos separados, antes que a empatia se aprofunde). A partir daí, ela entra em contato com personagens que compõem um universo de tipos humildes: a dona da pensão, dividida entre a cozinha e a televisão; uma menina doente e melancólica, que veio do interior para ser operada num hospital público; um jovem figurinista de vestidos de noiva; um pai de santo com loja de umbanda na vizinhança.
O contraste entre o meio social do qual veio a protagonista e esse "novo mundo", composto por seres simplórios, tem algo do recorte sociológico consagrado pelas telenovelas: o núcleo rico -com sua agenda de coquetéis, jantares e relações extraconjugais (e que só aparece nas recordações e fantasmas da protagonista)- e o núcleo pobre -infinitamente mais variado, com tipos mais "humanos", que extraem da privação uma vivência "autêntica".
O Novo Mundo é um oásis encravado no centro degradado de São Paulo, com seus travestis e fumadores de crack: a dona do hotel impõe horários rígidos, proíbe que os hóspedes levem acompanhantes para o quarto -enfim, é um resquício de vida familiar tradicional. Estamos diante de uma narrativa moral, cujo "correlato objetivo", o elemento concreto que serve de metáfora para a narrativa, são os pratos servidos no hotel ("comida de gente boa, trabalhadeira") e a oposição entre o esplendor da Babilônia carioca ("uma cidade para semideuses") e a miséria paisagística da capital paulista ("Em São Paulo você pode ser infeliz à vontade").
Uma narrativa moral -porém não moralista ou moralizadora. Logo sabemos que o figurinista soropositivo é namorado do pai de santo, que o marido da dona do hotel é um boêmio que só tardiamente reconheceu a filha lésbica e que a própria protagonista fora prostituta de uma boate antes de se tornar esposa fiel.
Ivana Arruda Leite fez um relato ao mesmo tempo duro e singelo sobre a redescoberta de como "a vida pode ser simples", de como comportamentos "desviantes" se incorporam à banalidade sem ambição -e de como o próprio romance (que já foi o mais corrosivo gênero literário) pode extrair beleza da banalidade.


HOTEL NOVO MUNDO

Autor: Ivana Arruda Leite
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (122 págs.)
Avaliação: bom




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