|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ LITERÁRIO
Vida simples
Primeiro romance de Ivana Arruda Leite é uma narrativa marcada pela nostalgia da vida autêntica
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O HOTEL Novo Mundo, na
praia do Flamengo, é o cenário do primeiro parágrafo de
"Quase Memória", o lugar em que o
narrador autobiográfico de Carlos
Heitor Cony recebe um misterioso
embrulho cujo remetente é seu pai,
morto dez anos antes.
O "Hotel Novo Mundo" que dá título ao primeiro romance da contista Ivana Arruda Leite é uma modestíssima pensão no centro de São
Paulo, sem memória ou sombra do
glamour (mesmo decadente) do homônimo carioca.
A coincidência -intencional ou
não- oferece um paralelo entre as
duas cidades que se estende ao conjunto dessa narrativa que oscila entre nostalgia da simplicidade e repulsa ao artifício.
Renata, a protagonista de "Hotel
Novo Mundo", é uma mulher traída
pelo marido que volta do Rio de Janeiro -onde vivia em ritmo de coluna social- para a São Paulo natal.
Na ponte aérea, faz amizade com um
bancário também de mudança e instala-se com ele no tal hotelzinho
(mas em quartos separados, antes
que a empatia se aprofunde).
A partir daí, ela entra em contato
com personagens que compõem um
universo de tipos humildes: a dona
da pensão, dividida entre a cozinha e
a televisão; uma menina doente e
melancólica, que veio do interior para ser operada num hospital público;
um jovem figurinista de vestidos de
noiva; um pai de santo com loja de
umbanda na vizinhança.
O contraste entre o meio social do
qual veio a protagonista e esse "novo
mundo", composto por seres simplórios, tem algo do recorte sociológico consagrado pelas telenovelas: o
núcleo rico -com sua agenda de coquetéis, jantares e relações extraconjugais (e que só aparece nas recordações e fantasmas da protagonista)- e o núcleo pobre -infinitamente mais variado, com tipos mais
"humanos", que extraem da privação uma vivência "autêntica".
O Novo Mundo é um oásis encravado no centro degradado de São
Paulo, com seus travestis e fumadores de crack: a dona do hotel impõe
horários rígidos, proíbe que os hóspedes levem acompanhantes para o
quarto -enfim, é um resquício de vida familiar tradicional.
Estamos diante de uma narrativa
moral, cujo "correlato objetivo", o
elemento concreto que serve de metáfora para a narrativa, são os pratos
servidos no hotel ("comida de gente
boa, trabalhadeira") e a oposição entre o esplendor da Babilônia carioca
("uma cidade para semideuses") e a
miséria paisagística da capital paulista ("Em São Paulo você pode ser
infeliz à vontade").
Uma narrativa moral -porém não
moralista ou moralizadora. Logo sabemos que o figurinista soropositivo
é namorado do pai de santo, que o
marido da dona do hotel é um boêmio que só tardiamente reconheceu
a filha lésbica e que a própria protagonista fora prostituta de uma boate
antes de se tornar esposa fiel.
Ivana Arruda Leite fez um relato
ao mesmo tempo duro e singelo sobre a redescoberta de como "a vida
pode ser simples", de como comportamentos "desviantes" se incorporam à banalidade sem ambição -e
de como o próprio romance (que já
foi o mais corrosivo gênero literário)
pode extrair beleza da banalidade.
HOTEL NOVO MUNDO
Autor: Ivana Arruda Leite
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (122 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Inscrições para sabatina de Schama estão abertas Próximo Texto: Crítica/"Crônicas Inéditas 2": Bandeira cria crônicas que têm seriedade da crítica Índice
|