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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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CRÍTICA

O anjo exterminador da novela das oito

BIA ABRAMO COLUNISTA DA FOLHA

No momento em que esta coluna é escrita, Fernanda ainda não levou o tiro, mas pode-se dar como certa sua morte. Claro, estamos falando da personagem interpretada pela atriz Vanessa Gerbelli na novela das oito, "Mulheres Apaixonadas" (Globo). As discussões bizantinas sobre a pertinência da causa mortis da moça -vitimada por uma bala perdida num bairro da zona sul carioca- ao mesmo tempo em que tocaram na questão sempre complicada do "realismo", desviaram a atenção para a falta de jeito com que foi tratada a sensibilidade infantil na novela.
Mais do que anunciada, a morte de Fernanda foi objeto de um braço-de-ferro entre Manoel Carlos e a subprefeitura do Leblon. Secundada por entidades ligadas ao turismo que temem que a violência do episódio prejudique a imagem do Rio, a subprefeitura tentou impedir a filmagem alegando complicações no trânsito. O autor insistiu na necessidade do "realismo" da cena para a credibilidade da trama, falou-se em censura, aventou-se a possibilidade de transferir a cena para São Paulo, o prefeito do Rio, César Maia, interveio pessoalmente, e acabou ganhando o tal realismo da novela.
Realismo? Será mesmo? O lugar do realismo nas novelas é tema vasto, que não se resolve com facilidade, mas o episódio merece reflexão sobretudo por aquilo que não entrou na discussão, o fato de a filha, uma criança, ter presságios sobre a morte da mãe.
Há vários capítulos, a menina Salete (Bruna Marquezine) vive momentos apavorantes. Sempre de noite, um anjo aparece para anunciar que a mãe vai morrer, mas que, paradoxalmente, "vai ficar tudo bem". A menina acorda chorando, aterrorizada. A mãe faz aquilo que qualquer adulto de bom senso deve fazer diante do pesadelo de uma criança: diz à menina que sonhos e pesadelos não se tornam realidade.
Mas a mãe, a pobre, além de ter que morrer, vai passar por tola, porque, na verdade, ela está errada. O que a menina tem não são sonhos maus, mas premonições.
Ora, a novela, ao "desautorizar" em público o discurso sensato que milhares de pais e mães utilizam para acalmar seus filhos que despertam assustados de pesadelos, tangencia a irresponsabilidade. Mais do que a exposição das maluquices sexuais e afetivas de adultos, alvo habitual do moralismo imediatista que pretende proteger a inocência das crianças, o sofrimento da personagem criança é o que cala mais fundo na sensibilidade infantil e, de certa forma, insinua que os adultos não sabem o que dizem.
E, para além dos aspectos deseducativos, a introdução do elemento obscurantista -clarividência, anjos, visões- no mínimo empana as aspirações ditas realistas do folhetinista Manoel Carlos. Fica parecendo coisa da Glória Perez.

biabramo.tv@uol.com.br


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