São Paulo, terça-feira, 27 de julho de 2004

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CINEMA

Diretor espanhol fala de novo filme, sobre a favela do Candeal, em Salvador, e considera seu trabalho "otimista"

Trueba filma "musical social" no Brasil

IVAN PADILLA
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE BARCELONA 7

A favela do Candeal, em Salvador, ganhou nos últimos meses um ilustre morador. O novo habitante se destaca entre a população local. É branco, apresenta um acentuado estrabismo e gosta de usar chapéu. Trata-se do consagrado diretor espanhol Fernando Trueba, 49, vencedor do Oscar de filme estrangeiro com "Sedução" (1992). O cineasta acaba de rodar lá seu último projeto, "O Milagre do Candeal", um filme sobre o cotidiano na favela, um "musical social", em sua própria definição.
O milagre a que se refere o título é a transformação da vida dos moradores através do trabalho social desenvolvido por Carlinhos Brown, como a Escola de Música Popular Pracatum, que oferece incentivos para as crianças estudarem e aprenderem música. Trueba sentiu de perto os problemas dos moradores do Candeal. Viu a pobreza da região e conheceu crianças condenadas à morte por doenças, sem recursos para se tratar. Ainda assim, considera ter feito um filme otimista.
O fio condutor da obra é o olhar de Bebo Valdés, um pianista cubano octogenário, de quem Trueba produziu "Lágrimas Negras", o premiado disco feito em parceria com o guitarrista de flamenco Diego "El Cigala". Quando soube que o sonho de Valdés era conhecer a Bahia, o diretor percebeu que tinha um enredo na mão.
Trueba se comprometeu a exibir o filme em primeira mão aos moradores do Candeal. A idéia é montar uma projeção ao ar livre, no dia 11 de setembro, no meio da favela, no marco da Jornada Internacional de Cinema da Bahia. Depois disso, "O Milagre do Candeal" será exibido nos cinemas. De Madri, Trueba falou à Folha.
 

Folha - O que há de documentário e o que há de ficção em "O Milagre do Candeal"?
Trueba -
O documentário está em que todo mundo interpreta a si mesmo. A ficção está na maneira de rodar e no fato de que as cenas são provocadas, não são casuais. O filme rompe essa fronteira entre ficção e documentário, e a música tem uma participação importante nisso. Classifico o filme como um "musical social".

Folha - Qual é a participação de Bebo Valdés?
Trueba -
Valdés é um personagem de fora, ele mesmo, um músico cubano de 85 anos, exilado há 45. Vai a Salvador em busca de suas raízes africanas e conhece um músico que o leva até o Candeal. É o personagem condutor. Através de seus olhos, descobrimos o Candeal e sua música.

Folha - Na Europa, se conhece muito a bossa nova, mas talvez não tanto a música feita na Bahia. Você acha que o público europeu vai se surpreender com o filme?
Trueba -
Mais que surpreender, espero que o filme contagie de amor o público. Acho que é um filme otimista, vitalista. E espero que descubram mais coisas do Brasil e o amem ainda mais.

Folha - Como em "Sedução", você e sua equipe viveram na mesma casa durante as filmagens. É saudável essa convivência intensiva?
Trueba -
Quando você filma fora de sua cidade, convive mais com a equipe, não está olhando no relógio para ver que hora vai voltar para a casa. Sua vida é o filme. Se além disso vivemos todos juntos, a equipe vira uma família. Acho que deveria ser sempre assim. Se o seu filme não é o mais importante, você não deve fazer filmes.

Folha - Como conheceu o trabalho de Carlinhos Brown?
Trueba -
Conheço a música de Carlinhos Brown desde seu primeiro disco, "Alfagamabetizado". Caetano também tinha me falado do trabalho de Carlinhos na comunidade. Carlos López, presidente da BMG da Espanha, nos apresentou e disse que eu precisava visitar o Candeal. Minha primeira viagem foi há um ano. Depois voltei em dezembro. E em janeiro começamos as filmagens.

Folha - O que chamou sua atenção no Candeal?
Trueba -
O talento e a beleza das pessoas de lá. A transformação do bairro através da música e o trabalho da comunidade. O milagre de poder passear pelas ruas a qualquer hora, livre de crimes e armas. É uma comunidade exemplar, ainda que tenha problemas.

Folha - Em que o Candeal se diferencia de outras favelas do Brasil?
Trueba -
No Candeal, você pode caminhar tranqüilo, sentar para conversar com as pessoas. Me sinto mais seguro lá do que em Madri, Paris ou Nova York.

Folha - Você diz que considera o Candeal como sua cidade, que conhece mais gente lá do que no bairro onde nasceu.
Trueba -
O bairro onde nasci só existe nas lembranças. Os lugares mudaram, as pessoas se mudaram. No Candeal, conheço muita gente: meninos, jovens, adultos, velhos. Gosto do ambiente que se respira, o tratamento das pessoas, o sentido de comunidade.

Folha - "Cidade de Deus" também retrata a vida numa favela. O que achou do filme?
Trueba -
Acho um grande filme. Muito bem feito. Só me pergunto se não utiliza a fotogenia do crime e da miséria. Se não transforma tudo em um grande videoclipe. Não é uma acusação. É uma pergunta que me faço como diretor. É algo sobre o que refletir. Acho que o cinema deve mostrar a realidade, mas também a utopia, o sonho, o caminho possível.

Folha - Por que decidiu exibir o filme no Candeal antes da estréia?
Trueba -
Acho que eles devem ser os primeiros a ver o filme. Espero que gostem. Quero seguir colaborando com projetos da comunidade. Filmei no mundo inteiro. Mas no Candeal criei mais vínculos com os moradores. O Candeal está no meu coração e nunca sairá. Rodar o filme foi uma experiência inesquecível.


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