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CONTARDO CALLIGARIS
Segurança, melancolia e inércia
A visão melancólica do país e de nós mesmos nos torna inertes e
um pouco covardes
NA FOLHA de 16 de julho, Marcelo Beraba, ombudsman do
jornal, observou que a imprensa não soube se servir da crise
paulista das últimas semanas para
comparar e questionar as propostas
de segurança pública dos candidatos
ao governo do Estado e à Presidência. Talvez, segundo ele, a imprensa
não dispusesse de "quadros com
bons conhecimentos" na área.
Nestes dias, o "Observatório da
Imprensa", de Alberto Dines, propôs uma pergunta aos internautas:
"O combate à violência pode entrar
na disputa eleitoral? Sim ou não?". A
grande maioria (80%) optou pelo
sim. Faz sentido: afinal, a segurança
pública é uma preocupação crucial
dos cidadãos.
Ora, no domingo passado, a Folha
publicou uma comparação das opiniões sobre segurança pública de
Serra, Mercadante e Quércia. A reportagem, de Lilian Christofoletti,
tentava diferenciar as propostas,
mas, à vista das respostas dos candidatos, a conclusão era que, em
matéria de segurança pública, os
três pensam de maneira parecida.
É lógico que seja assim. Há 15
anos, participo de encontros e congressos sobre segurança urbana.
Escutei enfoques diferentes e discordâncias quanto à ordem das
prioridades. Mas, no conjunto,
chega-se, de qualquer modo, a uma
lista com a qual todos concordam e
que é mais que conhecida. A ponto
que talvez o silêncio dos "experts"
(do qual se queixa Beraba) seja, sobretudo, sinal de cansaço.
Hoje, em matéria de segurança
pública, o problema não é inventar
o que fazer. O problema é fazer o
que sabemos que deve ser feito. A
segurança pública não é (ou não é
mais) um problema político. Os secretários de Segurança, estaduais e
federais, não precisam mudar segundo as fortunas dos partidos;
eles poderiam ser escolhidos por
sua competência e mantidos no
cargo como "técnicos", encarregados de implementar as medidas
com as quais todos concordam. Por
isso, aliás, na pesquisa do "Observatório", optei pelo "não".
Pergunta: se sabemos o que fazer, por que não acontece quase
nada? Proponho mais uma explicação. A lista das ações necessárias
para melhorar a segurança pública
no país é sempre encabeçada por
uma declaração geral do tipo: "A
sociedade brasileira deveria se tornar menos desigual e, com isso,
não produzir nem reproduzir exclusão social".
Não há quem discorde. Mas essa
recomendação inaugural, fundamental e justa, regularmente lembrada quando é proposta uma ação
concreta qualquer, acarreta consigo a sensação de um destino nefasto: injustiça e desigualdade são a
herança que nos constitui, o nosso
DNA. De repente, as outras recomendações da lista parecem esparadrapos cosméticos sobre uma ferida que não sara.
É um tipo de armadilha freqüente na nossa vida cotidiana: "Tenho
40 anos, não completei o colégio e
não tenho futuro", "Tenho 60, e
meu casamento de 30 anos está
sem graça, agora é tarde", "Nasci
no lugar e no momento errados",
"Com os pais que eu tive, não
adianta". Qualquer terapeuta sabe
que, diante desses autodiagnósticos radicais, "totais", a primeira tarefa é a de decompor a massa
amorfa do desespero até encontrar
seus elementos e organizá-los no
tempo e no espaço.
Na vida política não é diferente:
uma visão global negativa desqualifica os esforços para mudar, que
parecem fúteis esparadrapos. Somos fascinados pelas autodefinições (sobretudo pejorativas: "O
Brasil é assim mesmo") e, com isso,
preguiçosos na análise dos detalhes e na ação para alterá-los.
Essa atitude melancólica exerce
um forte charme, pois ela dá sentido aos nossos males e nos dispensa
de pensar e agir: nossa dificuldade
é inevitável, ela é nossa essência. A
autodepreciação nos revela quem
somos; ela nos resume e nos define. Com isso, ela também nos apazigua: por que lutar contra nosso
"ser"? Melhor fazer de nossa vida
um longo lamento.
À primeira vista, a queixa radical
contra a história e o "espírito do
povo" parece mais séria do que o
trabalho de formiga de quem tenta
alterar o que pode ser alterado.
Mas a eterna reclamação de que "o
buraco é muito mais em baixo"
acaba nos tornando inertes e um
pouco covardes.
PS. Boa notícia: vários leitores da
coluna da semana retrasada me comunicaram que há duas (ótimas)
naturezas-mortas de Morandi no
MAC da USP, doações de Francisco Matarazzo e Yolanda Penteado.
ccalligari@uol.com.br
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