São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUIZ FELIPE PONDÉ

Pequena sociologia do fungo


Há um conforto canalha em remeter os anos nazistas a algum tipo de monstruosidade


OS FILMES "O Leitor" e "Um Homem Bom" receberam críticas que circulam até hoje em jantares frequentados por pessoas éticas até os últimos fios dos cabelos. A acusação é que pecam por "humanizar o nazista". Há uma farsa moral nesse tipo de crítica, e pretendo desnudá-la hoje diante de seus olhos, caro leitor.
Hannah Arendt recebeu críticas iguais quando escreveu sobre o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém. Foi acusada de "traidora da raça" -sendo judia- porque dizia que o carrasco nazista era banalmente humano: nascia seu essencial conceito de banalidade do Mal.
Sua análise decorre do impacto que a burocracia tem sobre as pessoas, gerando uma espécie de zumbi moral. Carimbos, prazos de entrega, estatística, logística, defesa do próprio emprego calam o tato moral. A metáfora do Mal como fungo aí aparece: o Mal se espalha sobre o mundo, como um parasita que corrói a alma abandonada à inércia da burocracia carreirista, muda para o mal-estar moral.
A frase "humanizar o nazista" me soa estranha, apesar de que sei que os hipócritas a consideram óbvia como uma manhã de sol. "Humanizar o nazista" me soa como "cachorrar o cachorro", "arvorizar a árvore", "baratizar a barata".
Absurdo? Não, porque os nazistas e seus colaboradores silenciosos são tão humanos quanto você e eu. E não me venha dizer, entre dois goles de vinho, que não. Humano nunca foi sinônimo de retidão moral. Optamos racionalmente pelo Mal. "Racionalmente" aqui quer dizer "atos justificados do ponto de vista dos nossos interesses cotidianos" e "Mal" aqui significa "ser cruel com os indefesos".
A (falsa) indignação com a afirmação da humanidade dos nazistas por parte dos hipócritas já anuncia a farsa moral: nego a justificação silenciosa (humana e banal) do ato cruel para defender minha imagem de "bom". E por quê? Porque não suporto que desnudem o fato de que eu, provavelmente, agiria da mesma forma naquela situação. Nosso hipócrita perde o sono com isso. Sente-se nu. E por quê? Façamos uma pequena sociologia desta farsa.
Há um conforto canalha em remeter os anos nazistas a algum tipo de monstruosidade. Perceber a humanidade do nazista não é desculpá-lo ou justificá-lo moralmente, mas sim iluminar nosso parentesco com ele, é denunciar um cotidiano de pequenos interesses e medos que sufocam o mal-estar moral numa praga de fungos. É aí que reside a farsa moral: remeter o nazismo a uma monstruosidade é supor que foi algo "não humano" que o produziu. Essa suposição é a farsa moral: o monstro nele provaria que estamos a salvo.
A verdade é que a maioria esmagadora agiria como todos os que colaboraram durante o terror fascista. Denunciaríamos judeus, gays, ciganos, comunistas, desgraçados de todos os tipos. E por alguma causa maior? Não, denunciaríamos apenas para garantir nosso cotidiano.
Venha cá, caro leitor. Acompanhe-me neste exercício com o hipócrita. Você, hipócrita, perderia o emprego por um desconhecido? Abriria mão de melhorar sua situação social para defender uma mulher e suas duas filhas estranhas, que não tomam banho há dias? Perderia a chance de "garantir" o futuro do seu filho, incitando-o a combater o poder que pode lhe ser favorável? Escolheria essas estranhas, mesmo que sob dura crítica da mulher ou do homem que dorme com você e torna sua vida viável? Saberia responder ao seu filho a seguinte questão: "quem você ama mais? Eu ou essas estranhas?".
Provavelmente você produziria o que Woody Allen, em seu maravilhoso "Crimes e Pecados", chama de "racionalizações": "Não tenho nada a ver com essa gente", "Atrapalham nossa vida mesmo", "Deve haver uma razão para serem tratados dessa forma" ou "Melhor cuidar dos meus filhos". Enfim, viraria de lado, trocaria o canal da TV, e dormiria seu sono profundo. Sessenta anos depois, fica fácil desfilarmos, entre taças de vinho, juras morais. Se situações semelhantes se repetirem (e não falo de grandes catástrofes políticas), faremos o mesmo em nossa família, em nosso trabalho, em nossas relações sociais próximas. Assédio moral, indiferença, oportunismo, medo, são todos faces desta banal maldade humana.
No filme "Um Homem Bom", a bela esposa do homem bom, quando o vê pela primeira vez vestido com o seu uniforme da SS (coisa que ele detestava), não resiste, cai de joelhos e lhe faz um delicioso sexo oral. Eis nosso prêmio.

ponde.folha@uol.com.br


Texto Anterior: "Sgt. Pepper's" tem releitura jamaicana
Próximo Texto: Lente de Seliger narra história do pop
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.