São Paulo, quarta-feira, 27 de julho de 2011

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MARCELO COELHO

Heine


O estilo da escrita de Heinrich Heine é leve, fantasioso, irônico e romântico ao mesmo tempo


Para algum prêmio literário (não sei qual) já tenho forte candidato este ano.
É a grande (540 páginas) antologia dos textos do poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856), traduzidos por André Vallias para a editora Perspectiva.
Fale-se em "cultura alemã" -e nossa reação é sacar do bolso a cuíca e o tamborim. Não há quem não tenha medo da profundidade elefantina das declamações wagnerianas, para nada dizer das sinfonias de Bruckner (mas o coitado era austríaco) e da filosofia de Kant.
Amigo de Chopin, de Alexandre Dumas e de Balzac, Heine -que era judeu e exilou-se em Paris- não podia estar mais longe desse estereótipo germânico.
Seu estilo é leve, fantasioso, irônico e romântico ao mesmo tempo -e Heine entendia de Carnavais. Manuel Bandeira certamente se lembrou de um soneto de 1821 ("Me passa a máscara: vou desfilar/ De plebe... Me passa, eu vou vestir-me de gentalha") em um dos poemas de seu "Carnaval", quase cem anos depois: "Quero beber! Cantar asneiras...".
Mas a influência de Heine sobre a literatura brasileira não fica só no autor de "Libertinagem". Já escrevi sobre o "Navio Negreiro" do autor alemão, que inspirou Castro Alves e saiu em nova tradução em português em 2009 (editora SM).
André Viallas, nas excelentes análises que acompanham sua tradução, especula se o célebre "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade ("João amava Teresa que amava Raimundo") não teria seu antecessor direto num poema de Heine, musicado por Robert Schumann: "O rapaz ama uma jovem/Que deseja outro rapaz/Este de outra se enamora,/ Lá se vão ao juiz de paz"...
Muitos versos de Heine viraram canções, ou "lieder", como se diz em alemão. O sucesso que obtiveram na época (talvez o último caso de alta poesia virando best-seller na cultura europeia, segundo Walter Benjamin) provavelmente se deve ao fato de que Heine, como os compositores da MPB, sabia registrar, ao modo de um diário, os vaivéns, as nuances, as inúmeras situações do amor.
Traição, dúvida, promessa, raiva reprimida, descoberta mútua, ruptura, retorno: cabem todos os tons e todas as cores nas suas miniaturas.
O principal, e o que torna a poesia de Heine mais "moderna" do que romântica, e bem "brasileira" até, está na atitude de tomar certa distância, de desarmar os próprios sentimentos.
Num poema escrito aos 24 anos, Heine começa falando arrebatadamente da Lua, com um "séquito de estrelas", e do Sol da primavera. Poucos versos depois, ele conclui: "Estrelas, lua, sol e flor,/ Dois olhos lindos e canções de amor,/Por mais que nos comovam lá no fundo,/ Não mudam uma vírgula no mundo".
Essa sem-cerimônia com as próprias paixões justifica, mas não totalmente, algumas opções do tradutor, que às vezes exagera nos brasileirismos.
É o caso de "Não Vou Chiar", modo excessivamente pedestre que André Vallias encontrou para traduzir "Ich Grolle Nicht". O poema, também musicado por Schumann, é uma violenta descompostura na amante fiel, sob uma camada de fingida indiferença.
O texto, e a música de Schumann, foram traduzidos (sim, a música também pode ser "traduzida" para a linguagem da MPB) com muito mais eficácia e beleza por Arthur Nestrovski, num CD com o cantor Celso Sim. Virou, brasileiramente, "Pra que Chorar".
Mas a prosa de Heine aparece também em grande quantidade, e em traduções agilíssimas, na coletânea "Heine- Hein?" (o título é outra gratuidade criticável) de André Vallias.
Eis um trecho de uma crítica musical de Heine, a respeito do autor de "Giselle", Adolphe Adam (1803-1856). "O sr. Adam, pelo que sei, esteve na Noruega, mas duvido que lá algum feiticeiro (...) lhe tenha ensinado aquela melodia (...) que pode provocar um grande malefício: caso tocada, a natureza inteira entra em comoção, os rochedos e as montanhas começam a dançar, e as casas dançam, e, dentro, as cadeiras dançam; o avô puxa a avó para dançar; o cachorro, a gata; e até o bebê pula do berço e dança."
Essa "unificação geral" das coisas (Lua, flor, estrela, primavera, amor) se alterna, na literatura de Heine, com o princípio da separação, da ironia, da distância.
"Corto minha alma ao meio", diz ele à mulher desalmada. "Assopro-te a metade,/ Te abraço, então seremos/ Corpo e alma de verdade." Dancemos. Graças a esta tradução, a alma de Heine vive de novo.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris



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