São Paulo, sexta-feira, 27 de agosto de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Vargas: o último gesto

Estranha sensação aquela: voltar novamente ao quarto, ficar mais uma vez sozinho. A solidão agora era mais densa e calma: já não era o responsável pela trama que a vida e os homens haviam armado em torno dele, mas não dentro. Continuava presidente da República, mas aceitara a sugestão da licença. Não era bem um alívio o que sentia, mas uma pausa incômoda, embora pausa. Se dependesse exclusivamente dele, a solução teria sido outra. De há muito, fatigara-se do poder -e, o que era pior, fatigara-se da vida. Conhecia os homens -o suficiente para mais nada esperar deles. Mas conhecia-se bastante bem -e para isso se apegaria não à vida ou à carne, mas aos conceitos que haviam formado e firmado a sua personalidade, o seu gosto e o seu peso de homem.
Um desses conceitos, o mais inamovível, o mais impenetrável, era o da dignidade pessoal. E era justamente nesse território impermeável a qualquer concessão que ele temia sofrer.
Entrou no quarto e fez rápido balanço para sentir onde estava a falha, a brecha por onde entrava a dúvida. Fora perfeito. Falara bem claro: aceitava a sugestão do ministério, ou seja, colocava o interesse do governo acima de seus interesses pessoais. Não se submetera à idéia da licença sem impor condições: fizera uma, bem clara e ameaçadora: se a ordem constitucional não fosse mantida, ele agiria, ele apelaria para a solução violenta. Não a violência inútil, a coragem estéril, mas a violência que se consumaria num ciclo fechado, do tamanho de sua carne, no limite de seu sangue.
Foi ao cofre e guardou, outra vez, os papéis que de lá retirara. Verificou mais uma vez se as cópias estavam assinadas. Procurou colocar o documento bem à vista, para ser facilmente identificado. Seus olhos deram numa velha carta, dobrada em quatro: há muito não lia aquele papel, mas sempre sentia uma opressão quando pensava nele. Mentalmente recitou a frase que aquela carta continha e que às vezes o fazia sofrer. Sabia de cor o trecho que o perseguia: "Os liberticidas serão sacrificados, o senhor escapou da primeira vez, não escapará da segunda. Há sempre um Brutus ao lado de um César".
Recebera aquela carta em 1950, dias antes de tomar a decisão de candidatar-se. Irritara-se, na época, com aquela expressão, ele não se considerava um liberticida, fora levado a um período ditatorial por imposições superiores à sua vontade e conveniência, pessoalmente não se sentia responsável pela ditadura tramada e concretizada por alguns generais. Mas a insinuação da violência era clara, naquela carta. Não gostava de se comparar com ninguém, mas a comparação com César, se lhe era incômoda no plano pessoal, tinha um sabor de lisonja no plano da história. Não se julgava um César, mas a possibilidade de um Brutus era evidente: estava cercado de punhais por todos os lados.
Pensara um dia: por que não unir César e Brutus num mesmo gesto, no mesmo braço? A resposta a essa pergunta só ele poderia dar. Uma resposta que teria um sentido menos abstrato e mais lógico pela união de Getúlio -o governante paternalista e matreiro, com Vargas- o estadista que pensara em termos de futuro e se lançara à tarefa de estabelecer a estrutura básica de uma nação moderna. Que a história se encarregasse de julgar se Getúlio ou se Vargas mereceriam o perdão ou a glória. Competia a ele não se julgar, mas unir-se, tornar-se indestrutível. Seria a forma de vencer não a seus adversários, não aos interesses que contrariara, mas simplesmente de vencer. A necessidade de uma vitória era agora uma sede, uma fome física e nova que lhe queimava os lábios e fazia sua mão tremer. Faminto de vitória, ele já não precisava pensar mais. Bastaria, na hora exata, satisfazer o instinto, matar a fome. Vencer. Bateram à porta. Ele fechou o cofre e mandou que a filha Alzira entrasse. Ela trazia a nota oficial da reunião ministerial, sugeria algumas alterações, quis lê-la para o seu conhecimento. Mas que importava aquele documento? Não se licenciara de um governo: dava um passo em direção à eternidade, nada mais fazia sentido, a não ser isso.
-Façam o que quiserem. Eu já estou dormindo.
Alzira ia retirar-se, mas ele a chamou. Disse-lhe que, em caso de alguma novidade, ela apanhasse a chave do cofre; explicou que os papéis de valor seriam de dona Darci, os outros documentos seriam da própria filha. Por diversas vezes, o pai lhe falara assim, não era um alarme, era já uma rotina.
A filha retirou-se. Dono de um assombroso controle sobre suas emoções, decidiu dormir um pouco; teria tempo para agir depois, desejava fazer o grande gesto consciente e descansado, sem depressões e fadigas. Como o batalhador mais forte, ele escolheria a hora para o golpe final. Tinha o direito de escolher a hora de sua vitória.


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