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CARLOS HEITOR CONY
Vargas: o último gesto
Estranha sensação aquela:
voltar novamente ao quarto,
ficar mais uma vez sozinho. A solidão agora era mais densa e calma: já não era o responsável pela
trama que a vida e os homens haviam armado em torno dele, mas
não dentro. Continuava presidente da República, mas aceitara
a sugestão da licença. Não era
bem um alívio o que sentia, mas
uma pausa incômoda, embora
pausa. Se dependesse exclusivamente dele, a solução teria sido
outra. De há muito, fatigara-se do
poder -e, o que era pior, fatigara-se da vida. Conhecia os homens -o suficiente para mais
nada esperar deles. Mas conhecia-se bastante bem -e para isso
se apegaria não à vida ou à carne,
mas aos conceitos que haviam
formado e firmado a sua personalidade, o seu gosto e o seu peso de
homem.
Um desses conceitos, o mais
inamovível, o mais impenetrável,
era o da dignidade pessoal. E era
justamente nesse território impermeável a qualquer concessão
que ele temia sofrer.
Entrou no quarto e fez rápido
balanço para sentir onde estava a
falha, a brecha por onde entrava
a dúvida. Fora perfeito. Falara
bem claro: aceitava a sugestão do
ministério, ou seja, colocava o interesse do governo acima de seus
interesses pessoais. Não se submetera à idéia da licença sem impor
condições: fizera uma, bem clara
e ameaçadora: se a ordem constitucional não fosse mantida, ele
agiria, ele apelaria para a solução
violenta. Não a violência inútil, a
coragem estéril, mas a violência
que se consumaria num ciclo fechado, do tamanho de sua carne,
no limite de seu sangue.
Foi ao cofre e guardou, outra
vez, os papéis que de lá retirara.
Verificou mais uma vez se as cópias estavam assinadas. Procurou
colocar o documento bem à vista,
para ser facilmente identificado.
Seus olhos deram numa velha
carta, dobrada em quatro: há
muito não lia aquele papel, mas
sempre sentia uma opressão
quando pensava nele. Mentalmente recitou a frase que aquela
carta continha e que às vezes o fazia sofrer. Sabia de cor o trecho
que o perseguia: "Os liberticidas
serão sacrificados, o senhor escapou da primeira vez, não escapará da segunda. Há sempre um
Brutus ao lado de um César".
Recebera aquela carta em 1950,
dias antes de tomar a decisão de
candidatar-se. Irritara-se, na
época, com aquela expressão, ele
não se considerava um liberticida, fora levado a um período ditatorial por imposições superiores
à sua vontade e conveniência,
pessoalmente não se sentia responsável pela ditadura tramada
e concretizada por alguns generais. Mas a insinuação da violência era clara, naquela carta. Não
gostava de se comparar com ninguém, mas a comparação com
César, se lhe era incômoda no
plano pessoal, tinha um sabor de
lisonja no plano da história. Não
se julgava um César, mas a possibilidade de um Brutus era evidente: estava cercado de punhais
por todos os lados.
Pensara um dia: por que não
unir César e Brutus num mesmo
gesto, no mesmo braço? A resposta a essa pergunta só ele poderia
dar. Uma resposta que teria um
sentido menos abstrato e mais lógico pela união de Getúlio -o governante paternalista e matreiro,
com Vargas- o estadista que
pensara em termos de futuro e se
lançara à tarefa de estabelecer a
estrutura básica de uma nação
moderna. Que a história se encarregasse de julgar se Getúlio ou se
Vargas mereceriam o perdão ou a
glória. Competia a ele não se julgar, mas unir-se, tornar-se indestrutível. Seria a forma de vencer
não a seus adversários, não aos
interesses que contrariara, mas
simplesmente de vencer. A necessidade de uma vitória era agora
uma sede, uma fome física e nova
que lhe queimava os lábios e fazia
sua mão tremer. Faminto de vitória, ele já não precisava pensar
mais. Bastaria, na hora exata, satisfazer o instinto, matar a fome.
Vencer. Bateram à porta. Ele fechou o cofre e mandou que a filha
Alzira entrasse. Ela trazia a nota
oficial da reunião ministerial, sugeria algumas alterações, quis lê-la para o seu conhecimento. Mas
que importava aquele documento? Não se licenciara de um governo: dava um passo em direção à
eternidade, nada mais fazia sentido, a não ser isso.
-Façam o que quiserem. Eu já
estou dormindo.
Alzira ia retirar-se, mas ele a
chamou. Disse-lhe que, em caso
de alguma novidade, ela apanhasse a chave do cofre; explicou
que os papéis de valor seriam de
dona Darci, os outros documentos seriam da própria filha. Por
diversas vezes, o pai lhe falara assim, não era um alarme, era já
uma rotina.
A filha retirou-se. Dono de um
assombroso controle sobre suas
emoções, decidiu dormir um pouco; teria tempo para agir depois,
desejava fazer o grande gesto
consciente e descansado, sem depressões e fadigas. Como o batalhador mais forte, ele escolheria a
hora para o golpe final. Tinha o
direito de escolher a hora de sua
vitória.
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