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FERNANDO GABEIRA
Um elefante morto na sala
Vamos supor que um repórter vindo de um país nebuloso e etéreo -a "Neverlândia",
digamos-, liberto das amarras
do concreto, se dedique apenas às
metáforas e às análises, com seus
precários meios, para explicar em
sua terra a confusão que se passa
aqui.
Não interessam tanto à "Neverlândia" os milhões de dólares que
voam para as Bahamas. O que
são dólares? Por que tanto flutuam?
O repórter esbarrou com o que
procurava: palavras. Seu caderno
está cheio de anotações sobre a
operação esquenta-esfria. Não é
notícia em sua terra o caminho
do dinheiro dos fundos de pensão
para contas bancárias offshore. O
que ele tem de explicar é como
juntou essas palavras, como uma
simples mudança térmica produz
tantos recursos. As leis da física
seriam as mesmas daqui? O grande problema real desse mundo é
precisamente uma operação esquenta-esfria. Mas ela se realiza
num paradigma controlável pela
ciência da "Neverlândia". Como
a operação esquenta-esfria produz fortunas, não seria o caso de
enviar especialistas para comprovar que nem todos os planetas se
regulam pelas mesmas leis?
No caderno, está também alguma coisa como molho de tomate
com ervilha. Ele anotou isso. Um
prefeito determinou que a merenda escolar em sua cidade usasse
molho de tomate com ervilha.
Volta e meia, essas palavras voltavam à sua cabeça, mas não tinha ainda como apresentá-las;
faltava um gancho, algo que conferisse ao molho de tomate com
ervilha uma atração para os leitores de lá.
De repente, as ervilhas que o intrigavam voltam aos jornais e o
repórter sente a excitação de ter
algo a informar. Ervilhas vingadoras. Elas rodaram pela sua cabeça, brincaram de esconde-esconde e eis que reaparecem puxando o pé do prefeito.
Seu despacho não poderia apenas tratar de física ou de palavras
que se escondem atrás do toco para se vingar. Era preciso mais sofisticação. Num momento desses,
é difícil: os intelectuais estão em
silêncio. Eles supõem que não entendem mais o mundo e agora
vão puní-lo com seu silêncio.
Algumas brechas se abrem. Um
cientista político achou a causa
da crise que as pessoas presas à
matéria relacionam com o desvio
de milhões de dólares. A crise estava na virada de uma emissora
de televisão. Quando começou a
falar de crise, a crise apareceu no
céu azul, como reaparecem agora
as ervilhas voadoras.
Uma filósofa também quebrou
o silêncio. O repórter não sabia
como localizá-la, mas buscou nos
livros algo que pudesse orientá-lo.
Como explicar na "Neverlândia"
que uma equipe de governo tenha
desviado milhões e milhões? As
pessoas aqui também começaram
assim, refletiu ele. No principio,
homem e mulher viviam no paraíso, imersos na inocência original, até que uma serpente lhes
ofereceu a maçã do pecado.
Aí, finalmente, chegou a alguma coisa. O dinheiro foi produzido por uma operação térmica
chamada esquenta-esfria. Houve
uma crise produzida pela emissora de televisão, e os inocentes,
imersos no paraíso, foram seduzidos por um grupo de tucanos que
ofereceram a maçã da corrupção.
Tucanos? Assim são chamados. O
editor certamente vai reclamar:
serpente ou tucano?
Nessas horas, quando falam
com os editores, os repórteres dizem as piores coisas para si mesmos. Afinal, o que esse cara quer?
Num lugar onde se esquenta e esfria, onde as ervilhas viajam pela
memória em missão de vingança,
é preciso que haja algumas referências para que se avance. Queria ver esse puto explicar o que se
passa aqui unicamente com as referências da "Neverlândia". Com
a análise do cientista político, ele
pode ver, pelo menos, como se
constrói a crise pela TV.
O chororô que existe no país,
sem o cientista, é absurdo. Com
ele, fica mais claro. O presidente
chorou na TV e disse que sua mãe
nunca perdeu as esperanças. E a
TV mostrou, com todas as cores,
que ela perdia a esperança. Bingo.
Outro dia, o presidente foi à TV
para explicar como se meteu nessa confusão. Olhava para cima
-seriam os pássaros?- e disse
que foi traído. Não há referências
sobre isso. As pesquisas o levaram
à história de um cara chamado
Tiradentes, que perdeu a cabeça
lutando contra o poder colonial.
Foi traído e não traiu jamais a independência de Minas Gerais.
Como explicar que um traído
não perca a cabeça e os traidores
sim, já que a história nos remete
ao oposto? Como explicar que tenham comido o fruto do pássaro-serpente e não sejam expulsos do
paraíso?
De nada servem os livros. O repórter começa a entender o silêncio dos intelectuais. Seu plano de
trabalho ainda está nebuloso e
etéreo como o país de onde veio.
Alguém lhe disse que mataram o
elefante, mas não conseguem tirá-lo da sala. Daria uma boa frase inicial para sua história.
Mas quem matou o elefante?
-perguntariam os leitores de
"Nervelândia". Há dados indicando que morreu de seus próprios humores internos, de seus
ácidos e venenos. Para os leitores
de lá, a idéia de morte, gravidade,
finitude, é tão vaga. Do imenso
corpo do elefante existe um legado: a memória. Por isso talvez
chore tanto. Não porque morreu,
mas porque se lembra.
O repórter manda seu despacho
sob o signo da desconfiança. E se
as leis elementares que vislumbrou tiverem sido rompidas? A todo instante, ouve o presidente dizer: nunca na história, jamais em
todos os tempos, ninguém mais
do que nós.
Só os historiadores do futuro,
escavando o Palácio do Outono,
vão nos dar as verdadeiras metáforas deste mundo que acaba. Ou
começa? Retratos do avião, cartões de crédito, caixas de charuto,
gravações, gravatas, muitas gravatas, desenhos para matar tempo nas reuniões oficiais.
Durante muitos anos, a "Neverlândia" mandará seus repórteres
a essa terra. O que queriam dizer
com tantos dólares na cueca? Por
que dormem quando são interrogados? O que diria o velho que dirige a Câmara se completasse
suas frases? Por que decidiram comer um pato do palácio? Porque
desenham estrela vermelha no
jardim (pesquisa Burle Marx)?
Por que todos têm um advogado?
Como chegaram à formula do
protesto a favor? Da indignação
temperada?
Eram os deuses astronautas? O
repórter lembrou-se com carinho
de sua primeira matéria, a longa
entrevista com o cozinheiro de
Mao Tsé-tung. O editor, no fundo,
tem razão: ainda há muito que
descobrir.
@ - contato@gabeira.com.br
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