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FERREIRA GULLAR
Um visionário
Para vencer a adversidade, o artista Newton Cavalcanti bolava soluções desconcertantes
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O MUNDO em que vivemos não
está constituído apenas de
coisas materiais e fatos reais
mas também de imagens, símbolos e
cenários que os artistas inventam. O
papel do imaginário é fundamental
em nossa vida, que, por sua vez, é
também inventada por nós. Volto a
pensar nisso neste momento, quando tenho diante de mim algumas
gravuras e desenhos de Newton Cavalcanti, artista de peculiar personalidade e talento que, faz pouco, nos
deixou para sempre.
Só assim, dirão todos os que o conheceram, pararia quieto, já que,
durante todos os anos de sua vida,
esteve em permanente ebulição,
bradando contra tudo que lhe desagradava -e que não era pouca coisa.
Quando o conheci, nos anos 50, éramos ambos jovens, ambos nordestinos, ambos magérrimos, ambos
com o cabelo liso caído na testa.
Mas, se eu tinha duas mãos, ele só tinha uma e, não obstante, escolheu
ser gravador e, pior, fazer xilogravuras, o que lhe exigia cavar com exatidão, na placa de madeira, o contorno
de suas figuras exasperadas.
Sua vida não era fácil, mesmo por
que, além do mais, dedicara-se à xilo
numa época em que o concretismo
substituíra, nas artes plásticas, a figura humana pelas formas geométricas e o drama pelo construção racional; como se não bastasse, a própria gravura adotara técnicas sofisticadas e linguagem abstrata. Discípulo de Oswald Goeldi, de quem herdara o horror à sofisticação, tinha dificuldade de expor e vender.
Mas isso não o abatia, acostumado
que estava a enfrentar dificuldades
na vida. E tampouco media as palavras quando denunciava o que, para
ele, era uma traição aos verdadeiros
valores da arte. Não que fosse um
purista ou um acomodado; era, pelo
contrário, rebelde e inconformado.
Na verdade, o universo imaginário
que habitava era o das figuras patéticas, às vezes pessoas, outras vezes
animais inventados, monstros advindos das lendas ou de sua fantasia.
Para vencer a adversidade, bolava
soluções originais e desconcertantes, como quando fez parceria com o
arquiteto Sérgio Bernardes, que, se
não me engano, cedeu-lhe um apartamento para montar atelier. Nada
mais distante das gravuras de Newton do que a arquitetura de Sérgio,
ultramoderna e inovadora. Uma coisa, porém, os unia: a vontade de sonhar além dos limites aceitáveis.
Sérgio, certa vez, inventou um automóvel, cujo banco era preso à porta, de modo que, quando esta se
abria, vinha com ela o banco. Perguntei qual a razão disso, e ele me
respondeu que, se estivesse chovendo, o carona podia sentar-se sem ter
que fechar antes o guarda-chuva.
Sucede que, quando foram feitos os
cálculos de engenharia, viu-se que
não havia dobradiça capaz de agüentar o peso de uma pessoa que ali se
sentasse. Foi nessa época que Newton decidiu fazer seu atelier num vagão de trem desativado.
-Vou trabalhar e morar nele, disse-me, eufórico. Não pára de pagar
aluguel!
Detalhou-me seu plano: possuía
um pequeno terreno que comprara
em prestações, fora do Rio; colocaria
lá o vagão, retiraria os bancos e faria
as adaptações necessárias.
-Um atelier do cacete!, exclamou.
Você não acha?
Respondi que achava, mas isso
não foi suficiente para o plano dar
certo. Conseguira que o presidente
da Central do Brasil lhe cedesse de
graça um vagão de passageiros, fora
de uso.
-E por que o seu plano não deu
certo?
-Não tinha pensado em quanto
pesa um vagão de trem. Como ia levá-lo até o meu terreno em Campo
Grande? Ia ter que construir uma linha de trem só para isso, disse ele e
começou a rir às gargalhadas, com
aquela sua risada engasgada.
A última exposição que fez foi em
2004, reunindo uma seleção de pinturas, gravuras e aquarelas, inspiradas em dois poemas famosos: "Navio Negreiro", de Castro Alves, e
"Mensagem", de Fernando Pessoa.
Newton intuiu, entre os dois poetas tão diferentes, uma afinidade espiritual que se configurava na evocação do mar. Mas o mar que nos mostrou ali não era aquele que conhecemos, atual e azul; era um mar que
misturava, em suas águas, o sangue
dos negros escravos, a mística de
dom Sebastião e as lendas de Iemanjá; um mar que ele inventou e que só
marulha em suas telas.
Esses trabalhos, como quase todos os demais que realizou ao longo
de sua vida, são obras de um visionário, modernas em sua linguagem e
arcaicas, primitivas, em sua rude
carga subjetiva proveniente do imaginário popular.
Antes de dobrar a esquina da Viveiros de Castro, acenou para mim,
sorrindo, e se foi.
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