São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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FERREIRA GULLAR

Um visionário


Para vencer a adversidade, o artista Newton Cavalcanti bolava soluções desconcertantes

O MUNDO em que vivemos não está constituído apenas de coisas materiais e fatos reais mas também de imagens, símbolos e cenários que os artistas inventam. O papel do imaginário é fundamental em nossa vida, que, por sua vez, é também inventada por nós. Volto a pensar nisso neste momento, quando tenho diante de mim algumas gravuras e desenhos de Newton Cavalcanti, artista de peculiar personalidade e talento que, faz pouco, nos deixou para sempre.
Só assim, dirão todos os que o conheceram, pararia quieto, já que, durante todos os anos de sua vida, esteve em permanente ebulição, bradando contra tudo que lhe desagradava -e que não era pouca coisa. Quando o conheci, nos anos 50, éramos ambos jovens, ambos nordestinos, ambos magérrimos, ambos com o cabelo liso caído na testa. Mas, se eu tinha duas mãos, ele só tinha uma e, não obstante, escolheu ser gravador e, pior, fazer xilogravuras, o que lhe exigia cavar com exatidão, na placa de madeira, o contorno de suas figuras exasperadas.
Sua vida não era fácil, mesmo por que, além do mais, dedicara-se à xilo numa época em que o concretismo substituíra, nas artes plásticas, a figura humana pelas formas geométricas e o drama pelo construção racional; como se não bastasse, a própria gravura adotara técnicas sofisticadas e linguagem abstrata. Discípulo de Oswald Goeldi, de quem herdara o horror à sofisticação, tinha dificuldade de expor e vender.
Mas isso não o abatia, acostumado que estava a enfrentar dificuldades na vida. E tampouco media as palavras quando denunciava o que, para ele, era uma traição aos verdadeiros valores da arte. Não que fosse um purista ou um acomodado; era, pelo contrário, rebelde e inconformado.
Na verdade, o universo imaginário que habitava era o das figuras patéticas, às vezes pessoas, outras vezes animais inventados, monstros advindos das lendas ou de sua fantasia.
Para vencer a adversidade, bolava soluções originais e desconcertantes, como quando fez parceria com o arquiteto Sérgio Bernardes, que, se não me engano, cedeu-lhe um apartamento para montar atelier. Nada mais distante das gravuras de Newton do que a arquitetura de Sérgio, ultramoderna e inovadora. Uma coisa, porém, os unia: a vontade de sonhar além dos limites aceitáveis.
Sérgio, certa vez, inventou um automóvel, cujo banco era preso à porta, de modo que, quando esta se abria, vinha com ela o banco. Perguntei qual a razão disso, e ele me respondeu que, se estivesse chovendo, o carona podia sentar-se sem ter que fechar antes o guarda-chuva. Sucede que, quando foram feitos os cálculos de engenharia, viu-se que não havia dobradiça capaz de agüentar o peso de uma pessoa que ali se sentasse. Foi nessa época que Newton decidiu fazer seu atelier num vagão de trem desativado.
-Vou trabalhar e morar nele, disse-me, eufórico. Não pára de pagar aluguel!
Detalhou-me seu plano: possuía um pequeno terreno que comprara em prestações, fora do Rio; colocaria lá o vagão, retiraria os bancos e faria as adaptações necessárias.
-Um atelier do cacete!, exclamou. Você não acha?
Respondi que achava, mas isso não foi suficiente para o plano dar certo. Conseguira que o presidente da Central do Brasil lhe cedesse de graça um vagão de passageiros, fora de uso.
-E por que o seu plano não deu certo?
-Não tinha pensado em quanto pesa um vagão de trem. Como ia levá-lo até o meu terreno em Campo Grande? Ia ter que construir uma linha de trem só para isso, disse ele e começou a rir às gargalhadas, com aquela sua risada engasgada.
A última exposição que fez foi em 2004, reunindo uma seleção de pinturas, gravuras e aquarelas, inspiradas em dois poemas famosos: "Navio Negreiro", de Castro Alves, e "Mensagem", de Fernando Pessoa.
Newton intuiu, entre os dois poetas tão diferentes, uma afinidade espiritual que se configurava na evocação do mar. Mas o mar que nos mostrou ali não era aquele que conhecemos, atual e azul; era um mar que misturava, em suas águas, o sangue dos negros escravos, a mística de dom Sebastião e as lendas de Iemanjá; um mar que ele inventou e que só marulha em suas telas.
Esses trabalhos, como quase todos os demais que realizou ao longo de sua vida, são obras de um visionário, modernas em sua linguagem e arcaicas, primitivas, em sua rude carga subjetiva proveniente do imaginário popular.
Antes de dobrar a esquina da Viveiros de Castro, acenou para mim, sorrindo, e se foi.


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