São Paulo, quarta-feira, 27 de agosto de 2008

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MARCELO COELHO

Doutores e excelências


Pior que o gerúndio e o "a nível de" é o que já foi chamado de "louçania da língua pátria"

JÁ PASSOU de moda reclamar do abuso de gerúndios ("Vou estar telefonando...") e do famigerado "a nível de", que aliás nunca me pareceu a coisa mais horrível que se pode fazer com a língua portuguesa.
Bem ou mal, as pessoas começaram a se controlar um pouco nesses dois casos de vício idiomático.
Mas nunca terá fim a luta em favor do que já foi chamado, horrivelmente também, de "louçania da língua pátria".
Anoto algumas expressões que se infiltraram sem combate no dia-a-dia das "classes cultas" brasileiras e que não são menos de doer.
O marketing de livros, por exemplo, especializou-se em termos irritantes. Outro dia vi uma reedição de "Em Busca do Tempo Perdido", com uma cinta azul envolvendo todos os volumes. Dizia: "o Proust definitivo".
Por que "definitivo"? Trata-se de uma reedição, revista, da antiga tradução feita para a editora Globo, lá pelos anos 40. Por mais elogios que mereça, nenhuma tradução é "definitiva". A única mensagem real por trás desse "Proust definitivo" é a seguinte: compre de uma vez, e não se fala mais nisso.
Outra palavrinha comum é "referência". Sai um livro sobre as eleições americanas. Logo vem o marketing para garantir: "a referência".
Mais uma vez, está implícita a idéia de que você não precisa ler mais nada sobre o assunto. Compre, e estamos conversados.
Junto com "referência", vem outro termo de igual pedantismo, só que aplicado ao ensino universitário: "excelência". Pessoalmente, sinto calafrios quando vejo um anúncio de faculdade falando em "padrão de excelência no ensino de enfermagem", ou "níveis de excelência em pós-graduação lato sensu".
O "em", por sua vez, já teve épocas melhores. Lembro-me de comprar camisas "de algodão". Agora, todas são "em algodão". Temos os sapatos "em couro", e, se existem colchões "em espuma", logo os haverá "em molas" também.
É banalidade falar do economês, que ultimamente anda por baixo.
Mas de vez em quando ele dá as caras. O que dizer do famoso "marco regulatório"?
Quanto ao "desenvolvimento sustentável", não sei se deve seu nome ao fato de durar mais tempo ou se é porque preserva a natureza, ou melhor, o "meio ambiente". Sei que toda pessoa a favor dos "povos da floresta" se preocupa com o "desenvolvimento sustentável". Afinal, trata-se de uma questão "planetária". Espero que um novo "protocolo" ajude a "comunidade internacional" a resolver o impasse. De forma "negociada", naturalmente.
Enquanto muitos ainda procuram matricular-se em cursos de "excelência" em "gestão de recursos", os intelectuais mais sofisticados procuram personalizar sua linguagem, dotá-la de calor humano.
Caem em outros vícios curiosos.
Cito um, que se alastra rapidamente. Notei-o pela primeira vez numa mesa-redonda sobre Gilberto Freyre. Os participantes, em sua maioria, referiam-se ao autor de "Casa-Grande e Senzala" pelo seu nome completo, tal como está na capa do livro.
Gilberto Freyre.
Mas alguém achou bonito falar apenas de "dr. Gilberto". Obtinha-se, com isso, um tom mais íntimo, próprio de quem o tivesse conhecido pessoalmente. Ao mesmo tempo, era inconfundível o ar de "casa-grande" que isso tinha.
É o equivalente a chamar Getúlio Vargas de "dr. Getúlio", ou Adhemar de Barros de "dr. Adhemar": coisa de acólitos. Mas pegou. Um livro recente com artigos sobre Sérgio Buarque de Holanda já tem seus exemplos de "dr. Sérgio".
Ah, ele era doutor?
A ensaísta Gilda de Mello e Souza, num volume em sua homenagem, virou "dona Gilda"; só falta trocarem Antonio Candido por "dr. Antonio".
Logo teremos "dr. Florestan". Verdade que houve "dona Ruth". Mas era tratada assim na condição de primeira-dama, não de intelectual.
Sérgio Buarque sem dúvida acharia graça em virar "dr. Sérgio". Pois nisto está a essência de seu "homem cordial": presume-se um tipo de relacionamento que não passa pelas idéias e pelo exame racional da obra de um autor, e sim pelo misto de reverência e intimidade, de autoritarismo e espírito de copa-e-cozinha, que caracteriza até hoje os padrões de exclusão da sociedade brasileira.
Falei em "exclusão"? Peço desculpas por esta última palavrinha. Gostaria de deletá-la dos meus marcos de referência.

coelhofsp@uol.com.br


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