São Paulo, quarta-feira, 27 de setembro de 2000

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Compleição franzina abrigava talento gigantesco

LUÍS NASSIF
COLUNISTA DA FOLHA

Foram os que vieram do norte que determinaram o violão brasileiro. Em geral influenciados pela tradição árabe-ibérica, desceram para o Rio nos anos 20, com os Turunas da Mauricéia. Dois de seus membros reescreveriam a história do violão brasileiro: João Pernambuco, gênio maior, e Meira, o grande mestre do violão popular brasileiro.
Em São Paulo, um violão mais para o erudito se consagrava por meio de Américo Jacomino e, especialmente, do mestre uruguaio Isaias Sávio. Mas no Rio se moldava a futura maior escola de violão do planeta.
João Pernambuco, com suas mãos de pedreiro e unhas compridas, criou o estilo duro, com os dedos pressionando fortemente as cordas, trazendo os sons que vinham das profundezas da cultura ibérica. Alguns anos depois, o violão brasileiro sofreria a segunda revolução, com Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, trazendo um estilo mais leve, jazzístico, mistura de influências de Debussy e do guitarrista cigano Django Reinhardt.
A grande influência pós-anos 30 é de Reinhardt que molda toda uma escola de guitarra de jazz. Garoto vai beber nessa água quando escolhe a palheta e em Debussy quando toca com a ponta dos dedos, puxando as cordas sem utilizar as unhas. Baden Powell é a síntese aprimorada de ambos. Surge como filho dileto do choro, tendo como professor Meira. Com 14 anos, conviveu com o grupo de violonistas da rádio Nacional Garoto, Zé Menezes, Bola Sete. Depois, com Vinicius, é o grande responsável pela transição da bossa nova que já encerrava o ciclo barquinho-mar-areia -para o período que se convencionou chamar de MPB.
Esgotado o ciclo dos festivais e o espaço aberto pela televisão, ruma para a Europa. Nos anos 70, sua carreira atinge o auge. Passa a se apresentar nas principais praças do mundo, consagrando um estilo de violão inigualável. Consegue juntar o choro ao jazz, criando um estilo marcante e único. O modo de tocar de Baden contagiou todo o mundo violonístico da época. Do consagradíssimo Charles Bird a violonistas de menor expressão, todos queriam ser e tocar como Baden. Sua capacidade de improvisar, de puxar acordes, e, ao mesmo tempo, de tirar interpretações seresteiras, seu estilo de composição trazendo elementos africanos, tudo contribuiu para transformá-lo na maior expressão do violão do século. Vá lá, tem Django, mas sou mais Baden. Em 1974, em uma apresentação no Olympia, de Paris, chega ao seu auge. Nunca o século 20 ouviu ou ouviria algo que sequer passasse perto, com exceção dos recitais de Django e de Oscar Aleman no Hot Club.
Enquanto brilhava na Europa, deixava plantadas no Brasil as sementes da terceira onda de violão brasileira depois da onda Pernambuco e da onda Garoto. Dessas sementes, brotam Marcus Pereira e Raphael Rabello, enquanto que Paulo Belinnati e Ulisses Rocha vão se inspirar em Garoto.
Mas nenhum deles logrou atingir o gênio de Baden, seu virtuosismo, sua sensibilidade, o talento gigantesco abrigado em uma compleição franzina, debilitada por muitos anos de bebida.
Mortes dão ensejo a superestimar as virtudes do morto. Não é o caso de Baden. O Brasil efetivamente perdeu um de seus maiores músicos de todos os tempos e, depois de Tom Jobim, o músico popular que levou mais longe a inigualável arte musical brasileira.


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