São Paulo, quarta-feira, 27 de setembro de 2000

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MARCELO COELHO
As xifópagas e a fé católica

Caso triste e macabro esse das xifópagas britânicas Mary e Jodie. Se ficarem juntas, terão poucos meses de vida. Os médicos querem fazer uma operação para separá-las, o que daria a uma delas a possibilidade de sobreviver. Mas os pais, católicos radicais, foram à Justiça contra a cirurgia; se prevalecer a vontade deles, as duas morrem.
Eis uma crença difícil de entender. Para não me sentir responsável pela morte de uma criança, luto na Justiça em favor da morte de duas.
Essa atitude, aparentemente submissa à fé católica, talvez seja muito ímpia. Num certo sentido, significa omitir-se de salvar alguém para que a culpa fique toda nas costas do Criador. É como se minha omissão não fosse um ato de vontade. "Se as duas morrerem, não é culpa minha; Ele é quem quis."
Por outro lado, imagino o que aconteceria com a sobrevivente se os pais, ultracatólicos, resolvessem seguir o conselho médico. A pobre menina com certeza passaria o resto da vida sendo culpada pela morte da irmã.
Algum bode expiatório, de qualquer modo, teria de ser encontrado face à desgraça natural desse nascimento.
Fico me perguntando em que medida o sentimento religioso não deriva, afinal, da necessidade de um bode expiatório qualquer. Menos do que prover uma explicação para o mal, para o imprevisto, para o absurdo, o que interessa é personalizar o inexplicável, pôr a chave do mistério nas mãos de alguém cujos desígnios estão fora de nosso alcance.
A ciência tende, é claro, a aumentar as responsabilidades do ser humano. Impõe decisões específicas -separamos Mary de Jodie? Faço ou não faço uma operação de alto risco em fulano? Tenho ou não tenho esse bebê? Traz não só a possibilidade de um erro técnico, mas também implica maior solidão na hora de decidir, sem segurança real sobre o acerto de cada decisão.
Provavelmente é por ser contra essa liberdade, e não tanto em função de dogmas a respeito da alma e da vida, que a Igreja Católica vai ficando cada vez mais avessa aos desenvolvimentos da biologia. Claro que tende a isolar-se com isso, presa a posições cada vez mais insustentáveis.
O exemplo da camisinha, entre todos, é o mais eloquente. A birra, a obsessão do Vaticano nesse caso chega ao ridículo, e parece que não usar preservativo se torna um princípio tão fundamental quanto o da Santíssima Trindade.
Desconheço se há alguma instrução papal contra a cirurgia plástica, mas bem que deveria haver, pois em geral se considera que a vaidade é um pecado ainda mais grave do que a luxúria.
Como se todo ato sexual sem vistas à procriação fosse necessariamente luxurioso... O Vaticano chega a extremos: um documento de 1994 discute se um católico, separado da mulher e vivendo com outra, pode comungar. Sim. Desde que, ao se confessar diante do padre, manifeste seu total arrependimento pelo segundo matrimônio. Deve então se separar da segunda mulher? Não, se isso implicar prejuízo para os filhos etc. Pode continuar junto com ela e comungar, mas... -e aqui vem o importante- os dois não devem mais fazer sexo.
Se deixarmos de lado as razões psicológicas, históricas e de ordem interna desse extremo conservadorismo no plano dos costumes, talvez haja ainda um outro motivo para as atitudes de Ratzinger e João Paulo 2º.
Parece-me óbvio que eles sabem que não serão seguidos nesses pontos pela grande maioria dos católicos. Católicos fervorosos vão se separar, vão usar camisinha, vão se casar de novo etc. Mas não importa que desobedeçam. A igreja não precisa de santos; precisa é de pecadores.
Há muitas organizações, hoje em dia, condenando a tortura, a pobreza, a guerra; por outro lado, são raras as pessoas que de fato têm responsabilidade direta nesses grandes males da humanidade. Especializando-se no sexo, a igreja conta, naturalmente, com um rebanho muito maior de pecadores a conduzir.
Os absurdos se sucedem, então, com certa lógica. O caminho para a canonização de Pio 9º e Pio 12 prepara, sem dúvida, a futura canonização do próprio João Paulo 2º, para a qual aponta a esquisitíssima revelação do último mistério de Fátima... Nada disso importa muito; nem mesmo, ouso dizer, para os católicos não-fanáticos.
Uma última observação, ainda numa nota de tolerância para com a gerontocracia vaticana. A declaração "Dominus Iesus" causou escândalo porque nela Ratzinger reafirmou que a Igreja Católica é o verdadeiro caminho para a salvação. Considerou-se isso um retrocesso no diálogo do Vaticano com as outras religiões.
Mas seria pedir demais ao Vaticano que dissesse que todas as religiões se equivalem. O documento insiste que "é obviamente contrário à fé católica" achar que a fé católica não é a melhor.
É óbvio mesmo. Como também é óbvio que ninguém precisa levar as instruções do Vaticano muito ao pé da letra para salvar-se no final.


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