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MARCELO COELHO
As xifópagas e a fé católica
Caso triste e macabro esse das xifópagas britânicas
Mary e Jodie. Se ficarem juntas,
terão poucos meses de vida. Os
médicos querem fazer uma operação para separá-las, o que daria a uma delas a possibilidade de
sobreviver. Mas os pais, católicos
radicais, foram à Justiça contra a
cirurgia; se prevalecer a vontade
deles, as duas morrem.
Eis uma crença difícil de entender. Para não me sentir responsável pela morte de uma criança, luto na Justiça em favor da morte
de duas.
Essa atitude, aparentemente
submissa à fé católica, talvez seja
muito ímpia. Num certo sentido,
significa omitir-se de salvar alguém para que a culpa fique toda
nas costas do Criador. É como se
minha omissão não fosse um ato
de vontade. "Se as duas morrerem, não é culpa minha; Ele é
quem quis."
Por outro lado, imagino o que
aconteceria com a sobrevivente se
os pais, ultracatólicos, resolvessem seguir o conselho médico. A
pobre menina com certeza passaria o resto da vida sendo culpada
pela morte da irmã.
Algum bode expiatório, de
qualquer modo, teria de ser encontrado face à desgraça natural
desse nascimento.
Fico me perguntando em que
medida o sentimento religioso
não deriva, afinal, da necessidade
de um bode expiatório qualquer.
Menos do que prover uma explicação para o mal, para o imprevisto, para o absurdo, o que interessa é personalizar o inexplicável, pôr a chave do mistério nas
mãos de alguém cujos desígnios
estão fora de nosso alcance.
A ciência tende, é claro, a aumentar as responsabilidades do
ser humano. Impõe decisões específicas -separamos Mary de Jodie? Faço ou não faço uma operação de alto risco em fulano? Tenho ou não tenho esse bebê? Traz
não só a possibilidade de um erro
técnico, mas também implica
maior solidão na hora de decidir,
sem segurança real sobre o acerto
de cada decisão.
Provavelmente é por ser contra
essa liberdade, e não tanto em
função de dogmas a respeito da
alma e da vida, que a Igreja Católica vai ficando cada vez mais
avessa aos desenvolvimentos da
biologia. Claro que tende a isolar-se com isso, presa a posições cada
vez mais insustentáveis.
O exemplo da camisinha, entre
todos, é o mais eloquente. A birra,
a obsessão do Vaticano nesse caso
chega ao ridículo, e parece que
não usar preservativo se torna
um princípio tão fundamental
quanto o da Santíssima Trindade.
Desconheço se há alguma instrução papal contra a cirurgia
plástica, mas bem que deveria haver, pois em geral se considera
que a vaidade é um pecado ainda
mais grave do que a luxúria.
Como se todo ato sexual sem
vistas à procriação fosse necessariamente luxurioso... O Vaticano
chega a extremos: um documento
de 1994 discute se um católico, separado da mulher e vivendo com
outra, pode comungar. Sim. Desde que, ao se confessar diante do
padre, manifeste seu total arrependimento pelo segundo matrimônio. Deve então se separar da
segunda mulher? Não, se isso implicar prejuízo para os filhos etc.
Pode continuar junto com ela e
comungar, mas... -e aqui vem o
importante- os dois não devem
mais fazer sexo.
Se deixarmos de lado as razões
psicológicas, históricas e de ordem
interna desse extremo conservadorismo no plano dos costumes,
talvez haja ainda um outro motivo para as atitudes de Ratzinger e
João Paulo 2º.
Parece-me óbvio que eles sabem
que não serão seguidos nesses
pontos pela grande maioria dos
católicos. Católicos fervorosos vão
se separar, vão usar camisinha,
vão se casar de novo etc. Mas não
importa que desobedeçam. A
igreja não precisa de santos; precisa é de pecadores.
Há muitas organizações, hoje
em dia, condenando a tortura, a
pobreza, a guerra; por outro lado,
são raras as pessoas que de fato
têm responsabilidade direta nesses grandes males da humanidade. Especializando-se no sexo, a
igreja conta, naturalmente, com
um rebanho muito maior de pecadores a conduzir.
Os absurdos se sucedem, então,
com certa lógica. O caminho para
a canonização de Pio 9º e Pio 12
prepara, sem dúvida, a futura canonização do próprio João Paulo
2º, para a qual aponta a esquisitíssima revelação do último mistério de Fátima... Nada disso importa muito; nem mesmo, ouso
dizer, para os católicos não-fanáticos.
Uma última observação, ainda
numa nota de tolerância para
com a gerontocracia vaticana. A
declaração "Dominus Iesus" causou escândalo porque nela Ratzinger reafirmou que a Igreja Católica é o verdadeiro caminho para a salvação. Considerou-se isso
um retrocesso no diálogo do Vaticano com as outras religiões.
Mas seria pedir demais ao Vaticano que dissesse que todas as religiões se equivalem. O documento insiste que "é obviamente contrário à fé católica" achar que a fé
católica não é a melhor.
É óbvio mesmo. Como também
é óbvio que ninguém precisa levar
as instruções do Vaticano muito
ao pé da letra para salvar-se no final.
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