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MARCELO COELHO
Veste Prada, mas sabe o que faz
"Diabo Veste Prada" é uma comédia que preserva com unhas e dentes tudo
o que finge ironizar
EU SABIA que era bobagem, de
modo que não posso reclamar. Confesso: fui ver "O Diabo Veste Prada". Os cartazes do filme de David Frankel se espalham
por toda a cidade. Posso sobreviver
mais ou menos incólume aos anúncios que me mandam vestir roupas
de Armani ou Zegna, mas não resisto a um lançamento cinematográfico tão propagandeado como esse.
Com alguma indulgência, a revista
"The New Yorker" disse que o filme
era superficial, mas tinha uma maravilhosa superfície. "O Diabo Veste
Prada" é menos que superficial, é
bobinho. E é mais que superficial
também: é diabólico, num sentido
que tento explicar.
No papel de Andy, estagiária novata numa chiquérrima revista de
moda internacional, a atriz Anne
Hathaway lembra um pouco a Audrey Tautou de "Amélie Poulain":
olhos de jaboticaba, modos simples,
certo ar de embaraço típico de uma
boa garota "normal".
Mas é uma Audrey Tautou que,
desde o início do filme, já aparece
turbinada -alta, sem tanto açúcar,
deslocando-se na tela com a independência que as belas mulheres sabem manter diante da revoada de
olhares que suscitam.
Ei-la que vai pedir emprego na sede novaiorquina de uma das maiores revistas de moda do planeta.
Tratam-na como lixo: não é bonita o
bastante, não é magra o bastante,
veste-se como uma mendiga, é uma
aberração da natureza.
A essa altura, já estamos presos à
armadilha do filme. "Como assim?",
pensa o espectador. Anne Hathaway
não é bonita o bastante? O que será
preciso para torná-la espetacularmente bonita?
A resposta, claro, é que ela precisa
usar Prada. Ou Valentino. Ou Dolce
e Gabbana. Nunca o merchandising
esteve tão imbricado à própria estrutura narrativa de um filme como
neste caso. E o que se segue é um
deslumbramento de vestidos, cortes
de cabelo, bolsas, sapatos... Que passaremos a admirar, por mais frívolo
que tudo isso nos pareça.
Experimentamos, imaginariamente, a mesma transformação pela
qual Andy passa durante o filme: de
início crítica, irônica, indiferente face às imposições da moda, ela acaba
se conscientizando de tudo o que
aquilo tem de bom, de belo, de desejável. Trata-se de um duro, interessante e rico aprendizado. Nisso, basicamente, concentra-se a mensagem do filme para o público consumidor. Acontece que, se se resumisse a isso, "O Diabo Veste Prada" não
passaria de uma longa e fantástica
peça de publicidade.
A habilidade diabólica do filme está em promover uma espécie de auto-boicote, desmentindo na aparência a mensagem publicitária que de
fato possui. Toda a superfície da história se encaminha no rumo de uma
lição edificante: o melhor são os valores simples da vida, quem se entrega à ambição e aos casacos de pele
vende a alma, perde os amigos, perde seu verdadeiro amor.
Se a vontade dos autores do filme
fosse realmente dizer isso, teríamos
material para um ótimo drama.
Uma cena isolada de "O Diabo Veste
Prada" chega perto dessa possibilidade. Num quarto de hotel, a poderosa editora da revista (Meryl
Streep) se vê repentinamente destituída de todo o aparato cosmético e
toda a segurança psicológica de que
esteve caricaturalmente investida.
Sua imagem uma mulher velha, acabada -e ainda assim incapaz de despertar nossa compaixão-, ocupa a
tela como uma explosão sem som.
É o único momento em que o filme se abre para o real. Pois a principal artimanha de "O Diabo Veste
Prada" está em supostamente defender uma mensagem "correta", do
tipo "seja você mesma, querida",
num registro de total irrealidade cômica. Afinal, estamos todos conscientes de que essa história de beleza interior, de namoradinho pobre,
de vida simples, é pura balela. Não só
isso: também toda a maldade, todo o
horror, toda a humilhação que Andy
irá conhecer em sua descida aos infernos da moda não são muito para
valer. Os deslizes éticos da protagonista, em sua escalada para o sucesso, são de uma inocência a toda prova. As vilanias de sua chefe são menos reprováveis e mais imaginárias
do que as de Cruela Cruel, no desenho animado da Disney.
Ah, mas o filme é só uma comédia... E boa comédia, aliás: as tiradazinhas irônicas de uma personagem
contra a outra, com destaque para o
excelente editor de moda da revista
(Stanely Tucci), seguem a melhor
tradição das sitcoms americanas.
Mas é uma comédia que preserva
com unhas e dentes tudo o que finge
ironizar. "O Diabo Veste Prada" pode ser uma gracinha de filme, mas
não brinca em serviço.
coelhofsp@uol.com.br
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