São Paulo, quinta-feira, 27 de setembro de 2007

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NINA HORTA

Primavera nas calçadas e no campo

Poderia existir maior contraste do que a noiva ladeada pelo negror das frutas subindo o tronco?

SAIO DE carro, e o sábado de São Paulo é de primavera. Manchas de sol no chão atapetado de florzinhas amarelas. As árvores despejam-se nas calçadas, que no dia seguinte, invariavelmente, serão varridas. Hoje as empregadas estão de folga e a vassoura suspende-se no ar. É coisa de roça, isto de limpar o terreiro bem limpinho em volta da casa para evitar as cobras que se escondam por ali.
Na avenida Rebouças tem uma casa de discos com uma árvore na frente, que todo ano explode em vermelho e se esparrama pelo chão. E a-da-vassoura, corre, chvar, chvar, aquele barulhinho inconfundível que não sei imitar por escrito.
Um dia não agüentei, saí da loja, e pedi que fizesse o serviço no dia seguinte. Era lindo demais, atraía os clientes, ajuntei que varrer beleza dá azar e ela fez um movimento de me entregar a vassoura, e uma cara de sai-bruxa-sai-voando-por-aí.
Sem querer, dentro do carro, indo para uma fazenda em Cordeirópolis, fazer o casamento de uma noiva linda, os pensamentos se viram em elogio à primavera. Conheço a região, a fazenda de Ibicaba lá pertinho com um bom pedaço de sua história contada num livro do colono suíço Thomas Davatz, "Memórias de um Colono no Brasil", prefaciado e, se não me engano, traduzido por Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico. É um livro especialíssimo, o prefácio vale por si só, bom pra nós brasileiros nos entendermos melhor.
Saindo do atalho sociológico em que me enrosquei, confesso que não me apetecem as flores, até estamos levando capuchinhas para as saladas, mas não me acostumo a estas firulas todas, como o touro Ferdinando (só os muito velhos se lembram desse desenho animado, o touro foi acusado de ser gay e sumiu).
Na verdade, a minha tese é que se as flores fossem muito gostosas não haveria um jardim florido pelas redondezas. Quem já viu moleque pulando muro para roubar margaridas ou rosas? E os supermercados estariam com as prateleiras de couve e alface gemendo sob os peso dos amores-perfeitos. Enfeitam, vamos combinar, mas, gostosas e suculentas, lá não são.
A estrada não tem nada de especial e leva ao campo. A minha idéia de viagem sempre me transporta para o mar, aí sim, estou mudando de paisagem, o azul esverdeado, a areia, o cheiro de peixe. Que vantagem Maria leva de viajar horas e não ver o mar? Água de rio também serve e essa fazenda tem um lago, onde deve ser bom pescar de caniço e samburá, num barquinho de madeira desbotado. Na estrada, barranco, barranco e mais barranco. Quem foi que disse que o Brasil era um pirambeira só? Ziraldo? Mato, bambu, escolinhas feias de doer, e estradas de terra, essas, sim, sombreadas ou ensolaradas que levam a panelas de alumínio brilhantes, goiabeiras lisas, piabas em riachos, homens sorrindo desdentados no zonzo bom do álcool, mulheres com a cabeça pegando fogo, imaginação, incendiada pelo sol das ribeiras onde lavam roupa. Bois, cachorros e varais.
De repente a fazenda aparece, estrada molhada, de terra, lisinha, e, de entrada, uma aléia de jabuticabeiras floridas de frutas.
Poderia existir maior contraste do que a noiva branca ladeada pelo negror das frutas subindo tronco acima, guardando dentro da casca dura, a festa, a alegria?
Daí começou a luta do gelo contra o calor súbito da primavera. O campo nos tentando com todas as frutas da estação, roubamos lá laranjinhas para acompanhar os crepes, flores de coloridos estranhos, jasmins arrebentando pelas colunas, bagas amarelinhas para enfeitar bandejas. Viram a tese confirmada? Não roubamos uma flor para comer, mas o sorvete era de jabuticaba, enfeitado com as folhas. O calor típico das cozinhas quis ganhar a batalha e derreter a festa. Mas, acho que ganhamos. Ou, pelo menos, empatamos.


ninahorta@uol.com.br

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