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NINA HORTA
Primavera nas calçadas e no campo
Poderia existir maior contraste do que a noiva ladeada pelo negror das frutas subindo o tronco?
SAIO DE carro, e o sábado de São
Paulo é de primavera. Manchas de sol no chão atapetado
de florzinhas amarelas. As árvores
despejam-se nas calçadas, que no
dia seguinte, invariavelmente, serão
varridas. Hoje as empregadas estão
de folga e a vassoura suspende-se no
ar. É coisa de roça, isto de limpar o
terreiro bem limpinho em volta da
casa para evitar as cobras que se escondam por ali.
Na avenida Rebouças tem uma casa de discos com uma árvore na
frente, que todo ano explode em vermelho e se esparrama pelo chão. E a-da-vassoura, corre, chvar, chvar,
aquele barulhinho inconfundível
que não sei imitar por escrito.
Um dia não agüentei, saí da loja, e
pedi que fizesse o serviço no dia seguinte. Era lindo demais, atraía os
clientes, ajuntei que varrer beleza dá
azar e ela fez um movimento de me
entregar a vassoura, e uma cara de
sai-bruxa-sai-voando-por-aí.
Sem querer, dentro do carro, indo
para uma fazenda em Cordeirópolis,
fazer o casamento de uma noiva linda, os pensamentos se viram em elogio à primavera. Conheço a região, a
fazenda de Ibicaba lá pertinho com
um bom pedaço de sua história contada num livro do colono suíço Thomas Davatz, "Memórias de um Colono no Brasil", prefaciado e, se não
me engano, traduzido por Sérgio
Buarque de Holanda, pai do Chico. É
um livro especialíssimo, o prefácio
vale por si só, bom pra nós brasileiros nos entendermos melhor.
Saindo do atalho sociológico em
que me enrosquei, confesso que não
me apetecem as flores, até estamos
levando capuchinhas para as saladas, mas não me acostumo a estas firulas todas, como o touro Ferdinando (só os muito velhos se lembram
desse desenho animado, o touro foi
acusado de ser gay e sumiu).
Na verdade, a minha tese é que se
as flores fossem muito gostosas não
haveria um jardim florido pelas redondezas. Quem já viu moleque pulando muro para roubar margaridas
ou rosas? E os supermercados estariam com as prateleiras de couve e
alface gemendo sob os peso dos
amores-perfeitos. Enfeitam, vamos
combinar, mas, gostosas e suculentas, lá não são.
A estrada não tem nada de especial e leva ao campo. A minha idéia
de viagem sempre me transporta
para o mar, aí sim, estou mudando
de paisagem, o azul esverdeado, a
areia, o cheiro de peixe. Que vantagem Maria leva de viajar horas e não
ver o mar? Água de rio também serve e essa fazenda tem um lago, onde
deve ser bom pescar de caniço e
samburá, num barquinho de madeira desbotado. Na estrada, barranco,
barranco e mais barranco. Quem foi
que disse que o Brasil era um pirambeira só? Ziraldo? Mato, bambu, escolinhas feias de doer, e estradas de
terra, essas, sim, sombreadas ou ensolaradas que levam a panelas de
alumínio brilhantes, goiabeiras lisas, piabas em riachos, homens sorrindo desdentados no zonzo bom do
álcool, mulheres com a cabeça pegando fogo, imaginação, incendiada
pelo sol das ribeiras onde lavam roupa. Bois, cachorros e varais.
De repente a fazenda aparece, estrada molhada, de terra, lisinha, e, de
entrada, uma aléia de jabuticabeiras
floridas de frutas.
Poderia existir maior contraste do
que a noiva branca ladeada pelo negror das frutas subindo tronco acima, guardando dentro da casca dura, a festa, a alegria?
Daí começou a luta do gelo contra
o calor súbito da primavera. O campo nos tentando com todas as frutas
da estação, roubamos lá laranjinhas
para acompanhar os crepes, flores
de coloridos estranhos, jasmins arrebentando pelas colunas, bagas
amarelinhas para enfeitar bandejas.
Viram a tese confirmada? Não roubamos uma flor para comer, mas o
sorvete era de jabuticaba, enfeitado
com as folhas. O calor típico das cozinhas quis ganhar a batalha e derreter a festa. Mas, acho que ganhamos.
Ou, pelo menos, empatamos.
ninahorta@uol.com.br
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